De uma vez por todas, para que conste: a «Mensagem» nunca ganhou um prémio “de segunda categoria”… :-)

80 anos depois da sua publicação e entrada para a História da literatura de Portugal e da Lusofonia, o livro «Mensagem», de Fernando Pessoa, continua embalado em vários celofanes de lendas e equívocos. Por mais suaves – e até tantas vezes coloridos – que sejam, urge trabalhar para desfazer, cada vez mais, esses ‘mitos’. Muitos deles, lançados até pelos mais próximos de Fernando Pessoa. O estudo de «Mensagem», obrigatório para os alunos do 12º ano de escolaridade, coloca-os na linha da frente para serem receptores e embaixadores da verdade dos factos. É algo que nos esforçamos sempre para fazer, nas visitas guiadas destes estudantes à Casa Fernando Pessoa. Mas, certamente, o tempo de oralidade nunca é o mesmo que a segurança da leitura. Por isso, para estudantes, professores e público em geral, aqui reproduzo, abaixo, um sempre oportuno artigo do eminente pessoano José Blanco, uma das maiores referências mundiais do estudo de Fernando Pessoa. 

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«A Verdade sobre a “Mensagem”
 
Um dos muitos mitos pessoanos criados por João Gaspar Simões na sua Vida e Obra de  Fernando Pessoa (1950) e que ainda hoje perduram, tornados lugares-comuns acriticamente  repetidos por sucessivas gerações de estudiosos pessoanos, é o do “prémio  de  consolação”  atribuído  em  1934  à  Mensagem  pelo  júri  dos  Prémios Literários do Secretariado da Propaganda Nacional (S.P.N.).

É esse episódio de que me vou ocupar, propondo não uma verdade “à la Gaspar Simões”,  mas uma tentativa de aproximação à verdade do que realmente se terá passado.

No entanto, como se verá, embora seja evidente que a Mensagem não recebeu um “prémio  de consolação” humilhante, persistem no processo alguns aspectos pouco claros (para não dizer misteriosos) que não encontram fácil explicação.

Em nota  publicada  nos  jornais de  29  de  Novembro de  1933, o  Secretariado da Propaganda  Nacional,  dirigido  por  António  Ferro,  anunciava  a  criação  de  cinco Prémios Literários – Prémio Eça de Queiroz (Romance), Prémio Alexandre Herculano (História), Prémio  Antero de Quental (Poesia), Prémio Ramalho Ortigão (Ensaio) e Prémio António Enes (Jornalismo), destinados a que “a Política do Espírito seja, em Portugal, uma realidade, e para que a nossa atmosfera intelectual se anime de novos estímulos e de novos motivos de expansão (…)”.

O  regulamento  do  concurso  punha  condições  à  índole  das  obras  que  seriam admitidas.  Falava-se  em  servir  “uma  intenção  amplamente  construtiva”  (para  o Romance),  em  “firme  critério  patriótico”(para  a  História),  em  “inspiração  bem portuguesa e, mesmo, de preferência, um alto sentido de exaltação nacionalista” (para a  Poesia), em  “espírito nacional e  renovador” (para  o  Ensaio)  e,  finalmente, em assunto de largo alcance nacional” (para o Jornalismo).

O Júri do Prémio Antero de Quental seria constituído por “um poeta de grande nome nacional, um poeta da nova geração literária e dois críticos literário em exercício na Imprensa de Lisboa”.

As condições do concurso provocaram uma reacção imediata da revista Presença, em cujo  número  39  (o  mesmo  em  que  veio  publicada  a  “Tabacaria”,  de  Álvaro  de Campos), Albano Nogueira veio severamente contestá-las, em nome dos “direitos do Espírito e a inalienável liberdade do Artista”. Escreve o articulista: “Seria por todos os títulos louvável tal iniciativa se, logo de princípio, os seus possíveis bons resultados não  estivessem  seriamente  comprometidos pelo critério adoptado”, porquanto tais bases não só tendiam a reduzir o artista, a “servidor de qualquer doutrina ou seita” ou a “panfletário”, como iriam certamente viciar o julgamento dos méritos das obras.1

As condições restritivas do Regulamento não preocuparam excessivamente Pessoa, que resolveu concorrer ao Prémio Antero de Quental com a Mensagem. Como disse a Casais  Monteiro, em carta de 13 de Janeiro de 1935, “Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei  porquê, ter  organizado e  pronto.  Como  estava  pronto,  incitaram-me  a  que  o publicasse: acedi”.2

Na mesma carta, Pessoa esclarece: “Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de “Mensagem” figurava em número  um”. Tipicamente, Pessoa dizia ao seu correspondente o que para ele, naquele momento, era “verdade” – mas não o tinha sido três anos antes, quando dava conta a João Gaspar Simões dos seus planos editoriais.

De facto, em carta de 28 de Julho de 1932, dizia a Gaspar Simões: “Primitivamente, era minha intenção começar as minhas publicações por três livros, na ordem seguinte: (1) Portugal,  que é um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Português (Contemporanea 4) é a segunda parte (…)”. Seguir-se-iam o “Livro do Desassossego”,  os   “Poemas  Completos”  de  Alberto  Caeiro  e,  mais  tarde,  o “Cancioneiro” e a série das  “Ficções do Interlúdio” (com a poesia dos heterónimos). Mais adiante, Pessoa resume: “A  intenção, possivelmente provisória, em que estou agora é de publicar, sendo possível este ano, ou na passagem dele para o outro, oPortugal  e  o  Cancioneiro.  O  primeiro  está   quase  pronto  e  é  livro  que  tem possibilidades de êxito que nenhum dos outros tem. O  segundo está pronto: basta escolher e colocar”.3

Tais  como  a  informações  a  Casais  Monteiro,  estas  constituíam  a  “verdade”  do momento em que Pessoa escrevia. O livro “Portugal” – a futura Mensagem – não estava  “quase pronto” em 1932. Só o viria a estar em 1934, quando, com vista à iminente publicação para efeitos do concurso do S.P.N., Pessoa escreveu os últimos dez poemas que integrou na versão final, contendo, não os 41 poemas previstos em 1932,  mas  os  44  que  constituem  a  obra  entregue  na  tipografia.  Quanto  ao “Cancioneiro”,  estava,  em  1932,  muito  longe  de  acabado  (ou  até  mesmo  de começado). Em carta a Casais Monteiro datada de 20 de Janeiro de 1935 – dois anos e meio passados sobre as informações dadas a Gaspar Simões – Pessoa informa que está  em  vias  de  publicar  “o  livro  grande  em  que  congregue  a  vasta  expressão autónima de Fernando  Pessoa. Salvo qualquer complicação imprevista, deverei ter esse livro feito e impresso em Outubro deste ano”.4

Voltemos à carta de “explicações” sobre a Mensagem, dirigida por Pessoa a Casais Monteiro.  Escreve  Pessoa:  “Como  [o  livro]  estava  pronto,  incitaram-me  a  que  o publicasse”. “Incitaram-me” – quem?

Para mim, não oferece dúvidas que a publicação da Mensagem e a sua apresentação ao concurso foram o resultado de uma conspiração de, pelo menos, quatro amigos de Pessoa:  Augusto Ferreira Gomes, Augusto Cunha, Almada Negreiros e o próprio António Ferro.

O Director do S.P.N., antigo companheiro de Pessoa dos tempos do Orpheu, tinha todo o interesse político em reconhecer oficialmente o talento de Pessoa tornando-o, pelo menos na aparência, um escritor não desafecto à “Situação”. Sabe-se hoje que esse seu interesse em ver Pessoa concorrer e ganhar o Prémio Antero de Quental, o levou ao ponto de adiantar, do “saco azul” do Secretariado, o dinheiro necessário para a composição e impressão da Mensagem, como há anos me revelou o pintor Paulo Ferreira, à época jovem colaborador do S.P.N.

Assegurada  a  cumplicidade  activa  de  António  Ferro,  os  outros  conspiradores montaram um “lobby” destinado a influenciar o júri em favor da Mensagem.

Como o júri veio a reconhecer na decisão final, Pessoa era um escritor “isolado voluntariamente do grande público”; e António Ferro, no seu discurso na cerimónia final de  entrega dos prémios, sublinhou que o concurso atingira os seus objectivos, revelando  autores  como Vasco Reis ou “roubando-os ao seu isolamento, como no caso de Fernando Pessoa”.

Para quebrar um pouco desse isolamento, chamando a atenção do público (e do júri) para o Poeta, o “lobby” entrou em acção.

A primeira iniciativa,  em  16  de  Junho  de  1933,  foi  a  publicação, promovida por Augusto Ferreira Gomes, dos doze poemas de “Mar Português” no jornal A Revolução. Este  jornal  era   o   órgão  do  Nacional-Sindicalismo  –  o  movimento  nazi-fascista português, chefiado  por  Rolão  Preto,  que  pouco  mais  tarde  Salazar  haveria  de desmantelar e banir.5

Na nota de apresentação, Ferreira Gomes sugere ao Ministério da Educação Nacional que  recomende a  leitura  de  “Mar  Português” nas  escolas,  por  ser  “um  texto  de incontestável  superioridade,  de  incontestável  elevação  espiritual,  de  incontestável patriotismo e de incontestável utilidade nacional”.6

A segunda intervenção do “lobby” deu-se no mês seguinte:  a publicação antecipada de  poemas da Mensagem – “O Infante D.Henrique”, “D. João o Segundo” e uma primeira versão de “Afonso de Albuquerque7  na revista O Mundo Português, editada pela Agência  Geral das Colónias e pelo Secretariado da Propaganda Nacional. O director, Augusto Cunha, além de amigo pessoal e companheiro literário de Fernando Pessoa, era cunhado de António Ferro.

A publicação dos três poemas numa revista  oficial, em que, no mesmo número, colaboravam personalidades como Teófilo Duarte, Marcelo Caetano, Alberto Osório de Castro,  Diogo de Macedo e Henrique Galvão (este retratado por Eduardo Malta), tornava o seu autor “politicamente correcto”.

O terceiro momento do “lobby” ocorreu em 14 de Dezembro seguinte: a publicação de uma página inteira do Suplemento Literário do Diário de Lisboa dedicada a Pessoa e à Mensagem.  O livro já tinha sido posto à venda e estava-se a quinze dias  da decisão do júri.

Na primeira coluna, o jornal publica uma entrevista com Fernando Pessoa, conduzida por  Artur  Portela. É sintomática a presença, citada no texto, de Augusto Ferreira Gomes, autor da fotografia do Poeta que ilustra a entrevista.

Ao lado desta, são publicados, a três colunas, os poemas “O Infante”, “O Mostrengo” e “Prece”,   da  Mensagem,  acompanhados  de  três  desenhos  inéditos  de  Almada Negreiros.    (Note-se  a  preocupação  em  não  repetir  os  poemas  anteriormente revelados na revista O Mundo Português). É evidente que as ilustrações de Almada foram expressamente encomendadas para o efeito,  sendo uma paráfrase plástica dos poemas.

Na entrevista, Pessoa faz diversas revelações sobre a obra,  salientando  “é um livro nacionalista e, portanto, na tradição cristã representada primeiro pela busca do Santo Graal, e  depois pela esperança do Encoberto”, tendo como objectivo “Projectar no momento  presente  uma coisa que vem através de Portugal, desde os romances de cavalaria. Quis  marcar o destino imperial de Portugal, esse império que perpassou através de D.Sebastião, e que continua ‘há-de ser’”.

Dir-se-ia que, com estas palavras, Pessoa prevenia desde logo que o nacionalismo da obra –  característica exigida pelo regulamento do S.P.N. – ir muito além do cânone oficial do  Estado  Novo, para cujos próceres o “destino imperial de Portugal” era já então – e não haveria de ser num futuro indeterminado – uma realidade.

De resto, nas explicações dadas a Casais Monteiro na citada carta de 13 de Janeiro, Pessoa esclarece que convinha que aparecesse e “aparecesse agora” a sua faceta de “nacionalismo místico”, embora “de certo modo secundária” na sua personalidade. E precisa, cripticamente:  “Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do  subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto”.

É significativo o facto de as intervenções do “lobby” chefiado por Augusto Ferreira Gomes terem ocorrido em dois órgãos de informação ligados à “Situação” (O Mundo Português e A Revolução) e um conotado com a “Oposição” ou, como então se dizia, o “Reviralho” (o Diário de Lisboa), ficando assim cobertas as duas principais facções político-jornalísticas do tempo.

Assim, encorajado e ajudado pelos amigos, que lhe garantiam que a Mensagem seria premiada, esperançado em ver, finalmente, uma parte da sua obra apresentada ao público  leitor em geral de   forma autónoma – e não, como até então, dispersa nas páginas de jornais e revistas – Fernando Pessoa tomou, pela primeira vez, a decisão de terminar e publicar um livro.

Mencione-se, ainda, a circunstância de não ser  “pecado intelectual de maior” (como ele próprio disse)  reconhecer o jeito que lhe faria receber os 5.000 escudos do prémio – quantia muito apreciável para a época. Afinal, ao contrário do que dizia, Pessoa era capaz de “premeditação prática”…

Há, finalmente, uma terceira  hipótese (reconheço desde já  que não-provada) em defesa   da  “teoria  da  conspiração”.  Em  determinada  altura,  que  não  consegui determinar, o S.P.N. alterou a data limite da publicação, para efeito de admissão das obras ao concurso, alargando-a de 1 de Julho para 31 de Outubro de 1934.

Ora a Mensagem, ainda não estava pronta em 1 de Julho de 1934. Como Pessoa contou a  Casais Monteiro na citada carta de 13 de Janeiro de 1935, “O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim  de  Outubro”. O volume foi composto e impresso, segundo o colofon, durante o mês de Outubro. Se for possível provar que a alteração regulamentar de datas foi feita antes de Setembro de 1934, então ela tê-lo-á sido em benefício de Pessoa.

Em 31 de Dezembro, os jornais incluindo o Diário de Lisboa, noticiavam a atribuição dos Prémios. O prémio Eça de Queiroz (Romance, no valor de 10.000 escudos), não foi atribuído,  pois o respectivo júri “embora reconhecendo notáveis qualidades em algumas das obras que lhe foram submetidas”, deliberou, por maioria, não o conceder, “visto em nenhuma delas ter encontrado todos os requisitos exigidos pelas bases do concurso e pelas altas exigências  e finalidades a que deveria corresponder a sua escolha”. A não-atribuição deste prémio teve importância para o resto da história. O prémio Alexandre Herculano (História, no valor  de 6.000 escudos), foi atribuído a Caetano  Beirão da  Veiga, pelo  seu  livro  “D.Maria I”.  O  prémio Ramalho Ortigão (Ensaio, no valor de 4.000 escudos), foi atribuído a João Ameal, pelo seu ensaio “No limiar  da  Idade  Nova”.  O  prémio  António  Enes  (Jornalismo,  no  valor  de 2.000 escudos), foi atribuído a Augusto da Costa pelo seu livro de entrevistas “Portugal, Vasto Império”. O júri sugeriu que, na categoria “Jornalismo” fosse atribuído um prémio extraordinário ao livro de Fernando de Pamplona “Os Voronoffs da Democracia”.

O júri do Prémio Antero de Quental, presidido, como todos os outros, por António Ferro,  era  constituído  por  Alberto  Osório  de  Castro  (o  “poeta  de  grande  nome nacional”, então com 66 anos)  Mário Beirão (o “poeta da nova geração”, dois anos mais novo do que Pessoa e seu amigo pessoal)8  , e Acácio de Paiva, e Teresa Leitão de Barros (os dois “críticos literários em exercício”, o primeiro decano do júri com 71 anos de idade, a segunda, a mais jovem, com 36 anos).

Diário de Lisboa, tal como o Diário de Notícias do dia seguinte, transcreve excertos da acta do júri: “Prémio Antero de Quental (Poesia) – 5.000 escudos. (…) Premiado: em primeira categoria, e por maioria, o livro de Vasco Reis, Romaria (..). Um prémio de segunda categoria, destinado a um Poema ou poesia solta, deu-se, por maioria, ao livro de Fernando Pessoa, Mensagem (…).

É forçoso reconhecer que a redacção da acta não é feliz: salientando o prémio da primeira  categoria (5.000  escudos  para  a  obra  de  Vasco  Reis),  refere  o  prémio atribuído a Pessoa como “um prémio de segunda categoria” – em vez de dizer, nos termos  regulamentares, “o prémio  da segunda categoria, destinado a “Poema ou poesia solta”.

A confusão pioneira de João Gaspar Simões talvez tenha começado aqui e é muito provável  que tenha também contribuído para o comentário sarcástico da escritora Alice Ogando na sua recensão crítica da Mensagem, desde logo publicada no jornal O Diabo em 27 de Janeiro de 1935: “Esta obra obteve um segundo prémio no concurso da Propaganda. Apre! Muito bom deve ser o primeiro premiado para uma obra como esta poder ficar em segundo lugar!”.

O facto é que o júri considerou o (mau) livro de Vasco Reis uma “obra de genuíno lirismo  português, que revela uma alta sensibilidade de artista e que tem um sabor marcadamente   cristão  e  popular”.  Alberto  Osório  de  Castro  fez  mesmo  uma declaração de voto,  afirmando que, ao ler “A Romaria” tivera a sensação que lhe produziria a aparição de um Cesário Verde ou de um António Nobre…

Quanto ao  livro  de  Fernando  Pessoa,  a  acta  reza  que  era  “um  alto  poema  de evocação e interpretação histórica, que tem sido merecidamente elogiado pela critica”, acrescentando que o seu autor “é uma figura de marcado prestigio e relevo nos meios intelectuais   de   Lisboa,  e   uma   das   personalidades  mais   originais  das  letras portuguesas”.

Gaspar Simões escreve no seu livro que, se a Mensagem não ganhou, houve, no entanto “membros do júri que lhe deram o seu voto”. Aqui não se engana, pois, como consta da acta, as decisões do júri do Prémio Antero de Quental foram efectivamente tomadas “por maioria”.

Ora o júri era constituído por quatro elementos, sob a presidência do Director do S.P.N.; se, como consta da acta, este último, “não teve de intervir em nenhuma das resoluções tomadas”, verifica-se que a única maioria possível num conjunto de quatro votos é a de três a favor e um contra. Assim, três membros do júri terão atribuído à Mensagem o prémio da  categoria, contra o voto negativo do quarto membro. Quem teria considerado que o livro de Pessoa não era merecedor do prémio?

Na categoria “livro de versos”, o regulamento impunha que as obras tivessem     mais de cem páginas. Ora o que acontece com a primeira edição da Mensagem ?

A última página numerada do volume é a página 102, seguindo-se-lhe duas páginas não  numeradas. Pode assim dizer-se que, tecnicamente, a brochura apresenta 104 páginas. Por que razão o júri decidiu que tinha menos de cem páginas?

A única explicação é a de que algum ou alguns membros do júri, com minucioso (e suspeito) zelo regulamentar, se deu ao trabalho de analisar tipograficamente o volume, página a  página. Teriam então verificado que o compositor    havia literalmente (e habilmente)  “esticado” o miolo do livro, com o seguinte resultado prático: do total de 104 páginas, 27 estão em branco. Das restantes 77 páginas, 55 contêm os textos dos poemas;  nas restantes 22 paginas estão impressos: títulos isolados (12 páginas), legendas  latinas,  também  isoladas  (4  páginas),  índice  (4  páginas),  frontispício  e colofon (1 página cada).

Ora bem: esta hábil montagem tipográfica foi obra de Augusto Ferreira Gomes, o mais constante amigo e companheiro de Fernando Pessoa: jornalista, poeta, astrólogo, escritor  esotérico  e  boémio,  que  trabalhava  como  artista  gráfico  no  serviço  de publicações do S.P.N. Foi Ferreira Gomes quem levou o Poeta à Editorial Império onde a Mensagem foi impressa e o apresentou a Armando de Figueiredo,  proprietário e gerente da empresa. Armando Figueiredo contou, anos depois, que  Pessoa ia regularmente à tipografia rever as provas do livro mas  “se os seus afazeres não lhe permitiam aparecer , a revisão era feita pelo seu amigo Augusto Ferreira Gomes, com quem tinha grande intimidade”.9

Acontece, todavia, que se o júri foi mesquinho e meticuloso na contagem das páginas da Mensagem, estranhamente (ou propositadamente) não terá notado que, aplicando o mesmo critério tipográfico-contabilístico, o livro de Vasco  Reis tão-pouco podia ser aceite, por não atingir as 100 páginas regulamentares.

Efectivamente, A Romaria tem 120 páginas, das quais     92    são numeradas. Se descontarmos  3  páginas  com  o  ante-frontispício, a  lista das  obras  do  Autor e  o frontispício, 1 página de dedicatória, 2 páginas contendo a “Carta-Prefácio” de Alfredo Pimenta, 8 páginas com epígrafes ou simples numerais romanos, 1 página de errata e 11 páginas em branco, o número de páginas efectivamente ocupadas pelo texto do poema é de 94 – menos seis do que as regulamentarmente exigidas…

O inacreditável subterfúgio do “número de páginas” utilizado para afastar a Mensagem do  prémio da categoria “livro de versos”, revela, a meu ver, que na fase final do concurso,  Fernando Pessoa terá sido vítima de uma contra-conspiração, agora por parte do júri. Terá sido a influência do muito poderoso Alfredo Pimenta, autor da carta- prefácio publicada em A Romaria, na qual fazia encomiásticos elogios a Vasco Reis? E Alfredo Pimenta era um dos inimigos de estimação de Fernando Pessoa – e vice- versa…

Só  a  leitura  da  acta  completa  do  júri  do  Prémio  Antero  de  Quental  poderá, eventualmente, trazer algumas clarificações para o que se passou. Mas ainda não me foi possível encontrar pistas seguras sobre o paradeiro e a acessibilidade das actas, que talvez ainda se encontrem nos arquivos do antigo S.P.N. Ficará, pois, para uma nova investigação e, de momento, temos de contentar-nos com os extractos que delas foram publicados nos jornais da época.

A inesperada decisão do Júri, relegando o livro de Pessoa para a categoria de “poema ou poesia solta”, foi um balde de água fria para o “lobby” pessoano, que nunca teria imaginado  que a Mensagem falhasse o Prémio Antero de Quental na categoria de “livro de versos”.

Foi assim que António Ferro decidiu, “depois da leitura das actas”, tomar a única decisão possível para minimizar o relativo fiasco  provocado  pelo  júri  “contra- conspirador”.

Na acta final ficou, assim, registado que  “O director do Secretariado da Propaganda Nacional não teve de intervir em nenhuma das resoluções tomadas. Mas decidiu, em vista de não ter sido concedido o prémio do Romance, e de existir, assim, um saldo no orçamento dos  prémios literários  deste ano, corresponder aos desejos do júri do Jornalismo  – estabelecendo um prémio extraordinário de 2.000 escudos para “Os Voronoffs da Democracia”, de Fernando de Pamplona. Decidiu também, atendendo ao alto  sentido nacionalista da obra e ao facto do livro 12ter passado para a segunda categoria apenas por uma simples questão de número de páginas – elevar para 5.000 escudos o prémio atribuído à Mensagem de Fernando Pessoa”.10

Em termos contabilísticos, António Ferro tinha efectivamente à sua disposição um saldo  de  10.000 escudos, proveniente da não-atribuição do Prémio de Romance. Dessa       importância,        retirou, primeiro,         2.000              escudos          para        criar           um        prémio extraordinário e extra-regulamentar na categoria de Jornalismo, conforme sugestão do Júri. E  retirou mais 4.000 escudos para aumentar de 1.000 para 5.000 a segunda categoria do Prémio de Poesia: ao menos pecuniariamente, Pessoa ficou equiparado a Vasco Reis e à sua “Romaria”. Não se tratou, assim, de um prémio especial ou extraordinário, mas sim de um aumento do montante regulamentar do Prémio.

Como contou Luís Pedro Moitinho de Almeida, os 5.000 escudos do prémio permitiram a Pessoa viver alguns tempos de desafogo, sem meter vales à caixa, embora pouco lhe tivesse sobrado depois de pagar as suas dívidas. 11

E, se Fernando Pessoa ficou por ventura melindrado com a decisão do júri, vingou-se, com  luva  branca, do seu “rival” e co-premiado Vasco Reis, publicando no Diário de Lisboa, de 4  de Janeiro de 1935, uma crítica generosamente elogiosa (como eram, normalmente, as que fazia aos livros de amigos e conhecidos).

Como em regra acontecia nos seus escritos de crítica literária, o verdadeiro intuito deste texto era denegrir, uma vez mais, duas das suasbêtes-noires:  a Igreja Católica, em geral, e o catolicismo português, em particular, a que chamou “meiguice religiosa, preguiçosamente  incerta do em que realmente crê”. O Padre Vasco Reis, escreve Pessoa,  “a  quem  Deus   fez  ser  franciscano  para  fins  simbólicos  –  pertence portuguêsmente a este catolicismo  amoroso”. Os louvores à obra seguem depois destas linhas assassinas…12

Assim, ao contrário do que afirmaram João Gaspar Simões e todos que continuaram (e continuam) a repetir a sua errada lição, a Mensagemnão recebeu um prémio de consolação: foi, na realidade, um dos dois vencedores do Prémio Antero de Quental.

Por essa razão, pouco tempo depois (em data provável de Fevereiro de 1935), Pessoa escreveu,  a  meu  ver  sem  qualquer  ironia,  que  o  seu  livro  fora  “premiado,  em condições especiais e para mim muito honrosas, pelo Secretariado da Propaganda Nacional”.13

Pondo o dedo na ferida, Adolfo Casais Monteiro comentou em carta para Pessoa datada de 10 de Janeiro de 1935: “Não acho absurdo  – acho pelo contrário normal – que um júri ache A Romaria bom, e a Mensagem mau. Mas que o mesmo que acha bom, digno dum 1º. Prémio, o livro de Vasco Reis, ache também bom o seu – isso é que me deixa siderado! E por isso, felicito-o pelos tantos mil escudos, pois que o resto não  lhe  dá  uma  consagração  que  já  tem  há  muito  tempo,  ainda  que  para  um demasiadamente restrito público”.14

Por não ser muito conhecido, tem interesse contar o que posteriormente se passou com duas personagens fulcrais desta história: João Gaspar Simões e o Padre Vasco Reis.

Gaspar Simões, que concorrera ao Prémio Eça de Queiroz com o  seu romance Amores  Infelizes e não fora premiado, envolveu-se nas páginas da revista Fradique numa azeda polémica com Vasco Reis, descrevendo “A Romaria” como “essa obrinha para costureiras e marçanos”, e o seu autor como “um cândido franciscano tão pobre de talento quanto o fundador da sua ordem era pobre de bens deste mundo”.15

Quanto ao Padre Vasco Reis, anos depois secularizou-se, passando a ser o publicista Reis Ventura. Traumatizado durante toda a sua vida por ser publicamente acusado de ter sido o injusto “vencedor” de Fernando Pessoa declarou em 1973 numa entrevista: “Tem corrido um equívoco a esse respeito, que profundamente me molesta. Não há termo de comparação entre a ‘Mensagem’ e o poema, dos meus 19 anos, chamado ‘A Romaria’ (…) Embora  regulamentarmente figurasse ‘A Romaria’ em 1º. lugar, não pode haver dúvidas nem termos de comparação com a obra magnífica desse génio!16 E em 1985, numa carta dirigida ao director de O Jornal e publicada em 19 de Novembro, reiterou que os seus “versinhos de adolescente nem sequer existem” e que quem ganhou o “primeiro prémio” foi Fernando Pessoa.»

José Blanco, 2006 
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José Blanco, licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, fez toda a sua vida profissional na Fundação Calouste Gulbenkian (1961-2004), de cujo Conselho de Administração foi membro desde 1974 até se jubilar. Desde 1983 vem realizando trabalhos de investigação e divulgação da obra do poeta Fernando Pessoa, em Portugal e no estrangeiro. Participou em numerosos congressos e seminários internacionais de estudos pessoanos e proferiu conferências sobre Pessoa em vários países. Foi comissário das exposições pessoanas apresentadas em Paris e em Londres (1985). É Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Honorary Fellow do King’s College, de Londres. Publicou várias obras sobre Fernando Pessoa.
 
Albano Nogueira [A.N.], “Uma iniciativa cultural”. Presença, Ano VII, Vol. II, nº. 40, Dezembro de 1935, p. 15.
Adolfo Casais Monteiro, A POESIA DE FERNANDO PESSOA. 2ª. ed., Org. de José Blanco. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, pp. 228-229.
3 CARTAS DE FERNANDO PESSOA A JOÃO GASPAR SIMÕES. Prefácio, posfácio e notas do destinatário. 2ª. ed., Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, pp. 91 e 93.
4 Adolfo Casais Monteiro, op. cit., p. 244
5 Pessoa tinha já publicado em A Revolução (no nº. 74 de 6 de Junho de 1932) um dos poucos textos do “Livro do Desassossego” que revelou em vida.
Esta  versão  de  “Mar  Português”  é  a  que  havia  sido  publicada  em  1922,  no  nº.  4  da Contemporanea.
A versão publicada na revista (“Passa um gigante pela vasta terra”) foi substituída por uma variante total incluída na versão final da “Mensagem”.
8 Conhecem-se sete cartas de Pessoa a Mário Beirão, altamente elogiosas do seu talento poético.
“No XIV aniversário da morte de Fernando Pessoa. Algumas revelações curiosas do seu primeiro impressor Armando de Figueiredo”. Átomo, nº. 23, Lisboa, 30 de Novembro de 1949.
10  Diário de Lisboa, 31 de Dezembro de 1934, p. 16.
11  Luís Pedro Moitinho de Almeida, “Os vales à caixa de Fernando Pessoa”, in FERNANDO PESSOA. NO CINQUENTENÁRIO DA SUA MORTE. Coimbra: Coimbra Editora, 1985, pp. 43-48.
12 OBRAS  EM  PROSA  DE  FERNANDO  PESSOA.  PÁGINAS  SOBRE  LITERATURA   E ESTÉTICA. Org. de António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1986, pp. 190-191.
13    OBRA POÉTICA DE FERNANDO PESSOA. MENSAGEM E OUTROS POEMAS  AFINS. Org. de António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1986, p. 171.
14  Adolfo Casais Monteiro, op. cit., pp. 224.
15 João   Gaspar   Simões,   “Fernando   Pessoa   e   o   Prémio   Antero   de   Quental”,   in HETEROPSICOGRAFIA DE FERNANDO PESSOA. Porto: Inova, 1973, pp. 381-398.
16 “Em diálogo com Reis Ventura” (entrevista do Major Manuel Barão da Cunha). Jornal do Exército, nº. 159, Março de 1973, pp. 22-23.

Dia dos Namorados na Biblioteca da Casa Fernando Pessoa

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O AMOR EM PESSOA chega à Biblioteca da Casa Fernando Pessoa, no Dia dos Namorados, 14 de Fevereiro, esta sexta-feira, das 10h00 às 18h00, com entrada livre (atenção às regras de inscrição e ao limite de participações na visita). Há conhecimento, lembranças e um prémio para levar para casa. Apareçam!

PROGRAMA

10h00 – Inauguração da Mostra Bibliográfica “Amo Como o Amor Ama” (patente até 21 de Fevereiro). Os poemas de amor de Fernando Pessoa cruzam-se com a correspondência que trocou com a namorada, Ofélia Queiroz – e os estudos dedicados pela academia à relação entre ambos.

14h30 – “O amor que tenho não me deixa estar” é o mote para uma viagem às duas fases do namoro entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz. Visita guiada com lotação máxima de 40 pessoas. Marcação prévia obrigatória, até às 21h00 de 13 de Fevereiro, para o email ricardomorais@egeac.pt.

16h00 – Venha ler a sua carta de Amor a Fernando Pessoa. Desafiamos os nossos visitantes a trazer consigo, para ler em voz alta, a sua declaração de amor ao mais universal dos escritores portugueses. O texto deverá ocupar, no máximo, uma página A4. Dactilografada. A carta votada como mais criativa, pela equipa da Biblioteca da Casa Fernando Pessoa, será premiada com um jantar para duas pessoas, na Cafetaria Flagrante Delitro.

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O Poema Em Que Pessoa “Sucumbiu” Às Memórias de Infância

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Efabulador com poucos, “cerebralizador” das suas emoções como ninguém, nem assim Fernando Pessoa foi capaz de escapar ao imprevisto ressalto da saudade e das emoções em carne viva. O episódio mais flagrante e belo desta humanidade do “poeta fingidor” verteu-se para o papel em Setembro de 1935, pouco mais de dois meses antes da sua morte.

Bastou-lhe ouvir , na rádio, uma peça de piano perdida no tempo, para que Fernando Pessoa não resistisse à recordação das memórias de infância. «Un Soir à Lima» cruzou o éter, nas ondas da recém-inaugurada Emissora Nacional, e catapultou instantaneamente Pessoa para os anos felizes de Durban, na hoje África do Sul, aos serões de família, com a sua mãe ao piano.

Indirectamente, o “culpado” por estas memórias – e pelo extenso poema do ortónimo que abaixo reproduzo – foi compositor belga Félix Godefroid (24 de Julho de 1818 – 12 Julho de 1897), hoje obscuro, mas então sobejamente afamado na Europa continental, especialmente devido às suas criações para harpa e para piano, além das suas missas e óperas.

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UN SOIR À LIMA

Vem a voz da radiophonia e dá
A noticia num arrastamento vão:
“A seguir
Un Soir à Lima“…

Cesso de sorrir…
Pára-me o coração…

E, de repente,
Essa querida e maldicta melodia
Rompe do apparelho inconsciente…
Numa memoria subita e presente
Minha alma se extravia…
O grande luar da Africa fazia
A encosta arborizada reluzente.

A sala em nossa casa era ampla, e estava
Posta onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente…
Mas só eu, à janella.
Minha mãe estava ao piano
E tocava…
Exactamente
“Un Soir à Lima”.

Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorriso carinhoso e forte?
O que hoje ha
Que m’o recorda é isto que oiço agora
Un Soir à Lima.

Prossegue na radiophonia
A nossa, a sua melodia
O mesmo “Un Soir à Lima”.

Seu cabelo grisalho era tam lindo
Sob a luz
E eu que nunca pensei que ella morresse
E me deixasse entregue a quem eu sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguem é homem para a sua mãe!

E inda atravez de lagrimas não falha
Á memoria que tenho
O recorte perfeito de medalha
D’aquelle perfeitissimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,
Meu coração sempre infantil.
Vejo teus dedos no tèclado e ha
Luar lá fóra eternamente em mim.
Tocas em meu coração, sem fim,
Un Soir à Lima.

O silencio fatal das coisas findas
As tuas mãos pequenas e tam lindas
Com escrupulo risonho e familiar
Com um sorriso em que não ha
Nada senão o eternamente humano
Tiravas da quietude do piano
Un Soir à Lima.

Tinhas, perfil, um rosto de medalha
Eras de frente, e olhando, a minha mãe
Como hoje o teu olhar me falha
E o teu perfil me lembra bem

“Os pequenos dormiram logo?”
“Ora, dormiram logo”.
“Esta está quasi a dormir”
E tu, sorrindo ao responder continuavas
O que tocavas —
Attentamente tocavas —
Un Soir à Lima.

Tudo que fui quando não era nada,
Tudo que amei e sei só em verdade
Que o amei por não ter hoje estrada,
Que tenha qualquer realidade.
Por não ter d’elle mais que a saüdade —

Tudo isso vive em mim
Por luzes, musica e a visão
Que não tem fim
D’essa hora eterna no meu coração,
Em que voltavas
A folha irreal da musica a tocar
E eu te ouvia e via
Continuar
A eterna melodia
Que está
No fundo eterno d’esta nostalgia
De quando, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

E o apparelho indifferente
Traz da emissora inconsciente
Un Soir à Lima.

Eu não sabia então que era feliz.
Hoje, que o já não sou, sei bem que o era.

“Esta tambem está a dormir…”
“Não está”
Ficámos todos a sorrir
E eu distrahidamente vou
Continuando a ouvir,
Longe do luar que ha
E que lá fora existe duro e só,

O que me faz sonhar sem o sentir,
O que hoje por que tenho de mim dó
Esse canto sem voz, teclado e brando
Que minha mãe estava tocando —
Un Soir à Lima.

Não ter aqui numa gaveta,
Não ter aqui numa algibeira,
Fechada, haurida, completa,
Essa scena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
E isolar
Num logar
Da alma onde ficasse possuida
Eternamente
Viva, quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a familia e a paz e a musica que ha
Mas real como alli está
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

Mãe, mãe, fui teu menino
Tam bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou o trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.

Jazo, mesquinho,
Mas ao meu coração
Sobe, num torvelinho
A memoria de quanto ouvi do que ha
No que ha de caricia, de lar, de ninho,
Ao relembrar o amor, hoje, meu Deus, sósinho,
Un Soir à Lima.

Onde é que a hora, e o lar e o amor está
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima?

E num recanto de cadeira grande
Minha irmã,
Pequena e encolhidinha
Não sabe se dorme se não.

Eu tenho sido tanta coisa vil!
Tenho trahido tanto do que sou!
Meu espirito sedento
De raciocinador subtil
Quantas vezes prolixamente errou!
Quantas vezes até o sentimento
Innaninadamente me enganou!

Já que não tenho lar,
Deixa me estar
Nesta visão
Do lar de então
Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir —
Eu à janella
Do nunca mais deixar de sentir,
Nessa sala, a nossa sala, quente
Da Africa ampla onde o luar está
Lá fóra vasto e indifferente
Nem mal nem bem
E onde, no meu coração
Mãe, mãe
Tocas visivelmente,
Tocas eternamente
Un Soir à Lima.

A minha raiva de animal humano
A quem tiraram a mãe,
E não tem
Para o menino que lhe na alma ha,
Para lhe encher o coração,
Mais que esta visão —
As tuas mãos pequenas pelo piano
Quando, oh meu Deus, tocavas
Un Soir à Lima.

Ai, mas é engano.
Aqui sou velho
Não ha sala nem ha piano
Nem tu existes a tocar,
Ha um apparelho mudo
De onde um som vem de longe, e dóe
Como é que eu te darei um beijo agora?

Eu poderia, vindo da janella,
Como tantas vezes fiz
/* /

O raciocinador exacto
Cuja alma está em mil pedaços,
Em mil pedaços que nem ha…
Deixa-me dormir
E sonhar de estar vendo, a ouvir,
Un Soir à Lima.

E era nesta calma,
Nesta felicidade
Em que existia uma alma
(Meu Deus, que saudade!),
Que, sob a luz que dourava,
(Hoje onde é que isso está?)
Longe de onde o luar prateava,
Minha mãe tocava
Medalha attenta e humana ao piano,
Un Soir à Lima.

Desde então
Tenho atravessado
Muitas vidas.
As mais das vezes tenho errado.
Meu coração
Pesa de coisas esquecidas.
Desde quando
Nesse brando
Conforto do meu lar extincto
Eu, à janella, ouvia, hirto e sonhando,
Ermo e indistincto,
O que ha
Em toda a musica de intuição e instincto,
Quanto tenho deixado morrer
Dentro do que quiz ser,
Quanto tenho deixado
Só pensado,
Quanto, quanto,
Tem sido para mim sòmente sonho,
Sòmente o encanto,
Tristemente risonho
De o ter sonhado,
Quem sabe se a saudade
Transmutada num devaneio meio humano
De quanto nessa noite está,
Longiqua, em que, mamã, ao piano
Tocavas, sob a crua claridade,
Un Soir à Lima.

Pesa-me o coração. Um torpor denso
Occupa-me a consciencia de 
E um frio informe, desolado e denso
Não me deixa pensar.

Num baloiçar-me, num embalar
Relembro tudo, relembro em vão.
Meu Deus, isso tudo onde está?
Un Soir à Lima
Quebra-te, coração!…

Meu padrasto
(Que homem! que alma! que coração!)
Reclinava o seu corpo basto
De athleta socegado e são
Na poltrona maior
E ouvia, fumando e scismando,
E o seu olhar azul não tinha cor.
E minha mãe, creança,
No recanto da sua poltrona
Enrollada, ouvia a dormir
E a sorrir
Que estava alguem tocando
Se calhar uma dança…

E eu, de pé, ante a janella
Via todo o luar de toda a Africa innundar
A paisagem e o meu sonho.

Onde tudo isso está!
Un Soir à Lima
Quebra-te, coração!

Essa mão pequenina e branca,
Que nunca mais me affagará,

Sorrias, rindo, para mim
Esse sorriso que já teve fim,
E continuavas tocando
Un Soir à Lima.

E eu que /*nunca pago/ † † †
E a † só † o que eu sou…

E é uma emissora indifferente
Que por um apparelho inconsciente
Em musica, só, musica me dá
A angustia viva que me vem
De te ver, por me lembrar,
Minha mãe, minha mãe,
Tam tranquilla, tocar
Un Soir à Lima.

Mas entorpeço.
Não sei se vejo, se adormeço,
Se sou quem fui,
Não sei se lembro, nem se esqueço.
Ha qualquer coisa que indistincta flue
Entre quem sou e o que eu era
E é como um rio, ou uma brisa, ou um sonhar,
Qualquer cousa que não se espera,
Que se suspende de repente
E, do fundo onde ir acabar,
Surge, cada vez mais distinctamente,
Num halo de suavidade
E nostalgia,
Onde o meu coração ainda está,
Um piano, uma figura, uma saudade…
Durmo encostado a essa melodia —
E oiço que minha Mãe toca,
Oiço, já com o sal das lagrimas na bocca,
Un Soir à Lima.

O veu das lagrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa musica me entrega —
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo porque flue,
O horror da vida, porque é só matar.
Vejo, e adormeço
E no torpor em que me esqueço
Que existo ainda neste mundo que ha…
Estou vendo minha mãe tocar.
Essas mãos brancas e pequenas,
Cuja caricia nunca mais me affagará,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
Un Soir à Lima.

Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez alli.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.

Mas quê? Divago, e a musica acabou…
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei.

Divago, crio eternidades minhas
Num opio de memoria e de abandono.
Enthronizo fantasticas rainhas
Sem para ellas ter um throno.

Sonho porque me banho
No rio irreal da musica evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada
E a cabeça que sonha ao pé do muro.

Mas, mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é illusão.
Un Soir à Lima

Quebra-te, coração…

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[17-9-1935]

Fernando Pessoa, Poemas de 1934-1935, edição de Luís Prista, Lisboa, INCM, 2000

Muñiz Martinez, o primeiro “fotógrafo pessoano”

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Sendo conhecida a tremenda “alergia” que Fernando Pessoa desenvolveu, na idade adulta, ao acto de posar para fotografias, todas as tiradas na sua infância e juventude ganham um interesse acrescido, historicamente falando.

Entre essas, as do Estúdio Photographia Central (1872 – 1900), propriedade de Muñiz & Martinez, estão na linha da frente. O estabelecimento, extremamente popular na Baixa lisboeta do Séc. XIX, tinha duas lojas: uma na Rua Serpa Pinto, ao nº 66; e outra no nº 4 do Largo da Abegoaria, hoje Largo Rafael Bordalo Pinheiro. Ambas as moradas tinham o bónus acrescido de estarem situadas muito perto da primeira morada de Fernando Pessoa, ao Largo de S. Carlos.

A conjugação destes factores fez com que o nome Muñiz & Martinez ficasse para sempre ligado à imagem carinhosamente conhecida como “menino de sua mãe”, que nos apresenta um Fernando Pessoa bebé, em 1888, ao colo de sua mãe, Maria Madalena Pinheiro Nogueira.

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A ligação da família Pessoa ao estúdio Muñiz & Martinez mantém-se mesmo depois da morte do pai de Fernando, como atesta esta outra imagem, aqui do futuro escritor aos seis anos, já órfão de pai.

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O correr do tempo não foi meigo para qualquer destas e outras imagens dos primeiros anos de Fernando Pessoa, todas ou quase bastante danificadas e esbatidas, processo a que o uso então corrente do papel-cartão e da sépia não ajudou, naturalmente, estes ‘cartes de visite’.

Uma das obras de referência para encontrar estas e outras imagens nas melhores condições, mesmo que através de restauro ou tratamento digital, é sem dúvida o livro «Fernando Pessoa – Imagens de Uma Vida», edição da Assírio & Alvim em 2005, coordenada por Manuela Nogueira, sobrinha do mais universal dos escritores portugueses.

Uma «Mensagem» Muito (Mas Mesmo Muito!) Especial

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O caminho é ainda longo e precisa de apoios para concretizar a edição “comercial”. Mas, quando isso acontecer – porque vai acontecer – a «Mensagem» de Fernando Pessoa ganhará a primeira edição verdadeiramente bela e digna, em Braille. E tudo por “culpa” de um jovem designer gráfico português, Bruno Brites, que se tornou especialista neste sistema ou código de leitura com o tacto, inventado em 1827 pelo francês Louis Braille.

Muito recentemente, aliás, Bruno Brites ganhou o 1º prémio no 4º escalão das Olimpíadas de Braille, organizadas pela ACAPO em Portugal. O designer não tem quaisquer problemas de visão, nem conta com invisuais ou portadores de deficiência visual, seja na sua família, seja no círculo íntimo de amigos com os quais cresceu. E já se habituou, por isso mesmo, às reacções de estranheza – incluindo as minhas – a propósito da sua adesão incondicional ao Braille, um complexo código que actualmente está a ser aprendido apenas por uma minoria dos cegos registados como tal.

Agora com 33 anos, Bruno Brites licenciou-se em Design de Comunicação pelo IADE, em 2002. Seguiram-se sete anos de experiência profissional em várias agências e ateliers, como designer gráfico – e algumas incursões pela web. Caminhos diversos levaram-no, em 2010, até à Duncan of Jordanstone College of Art and Design, na Escócia, onde decidiu «investir numa ideia que esteve sempre na “gaveta”, a de ingressar num mestrado fora de Portugal. Pelo desafio que representava, pela curiosidade de apreender novos métodos de trabalho, e principalmente pela experiência multicultural.»

O projecto “Mensagem em Braille” que agora nasce é justamente «o resultado da tese de mestrado, e visto dessa perspectiva pode dizer-se que tem três anos. No entanto, só a partir de Setembro de 2012 o livro Mensagem começou a ganhar forma», adianta Bruno Brites.

O desenvolvimento de publicações que utilizem o Braille é cada vez menos considerado, como se a preservação da palavra escrita para cegos fosse fazer-se apenas pela internet e pelos audiolivros. Além destes, os terminais ou periféricos Braille conquistaram uma posição relevante nas vidas das pessoas afectadas pela cegueira. É verdade que estas ferramentas de inclusão social têm contribuído para um mais fácil acesso à informação, representando um grande passo em frente na autonomia das pessoas afectadas por deficiência visual. No entanto, estão também a ultrapassar em popularidade o uso de livros em Braille, porque são mais baratas, fáceis de usar e transportar. 

Assim, os livros em Braille começaram lentamente a receber a etiqueta de “obsoletos”. Como os conhecemos, são pesados, pouco práticos e muitas vezes editados em vários volumes, que ocupam demasiado espaço. Tanto a sua percepção visual como a interacção táctil que permitem deixam bastante a desejar. São, muitas vezes, verdadeiros ‘monos’, sem qualquer conceito de estética e ergonomia, usando pequenas etiquetas em Braille para identificar o nome do autor e o título da obra.

E é justamente neste cenário de diminuição das práticas de leitura em Braille, entre as pessoas invisuais ou amblíopes, que o projecto de Bruno Brites se eleva, procurando destacar a importância das edições em Braille no estabelecimento de uma ligação emocional entre os leitores e o livro.

Conforme avança Bruno Brites, a sua aventura começou «com a questão “Como comunicar na ausência de sentidos?”, e foi um passo para começar a olhar para o Braille como veículo de comunicação. O desafio foi transpor metodologias do Design Gráfico para o universo das pessoas cegas. Por exemplo, pegar em conceitos tipográficos e criar diferentes tipos de fonte em Braille, recorrendo a materiais distintos. No fim do projecto, foram utilizados a cerâmica e a cortiça, obtendo-se assim sensações diferentes para o leitor, relacionando os próprios materiais com o conteúdo do livro.»

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O projecto é um livro de poesia personalizado, produzido em colaboração com a ACAPO (Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal) para celebrar os 80 anos de «Mensagem», o único livro publicado em vida, em português, por Fernando Pessoa, o mais universal dos nossos escritores e poetas.

“Mensagem em Braille” teve uma paragem em 2012. Nesse ano, Bruno Brites “congelou” a matrícula na Duncan and Jordanstone College of Art and Design e voltou para Portugal, com a ideia de rumar a outros destinos. Foi aqui, entre contrariedades, que «a Mensagem ganhou um papel importantíssimo», confessa o designer: «não só pelas questões anteriores, mas fundamentalmente enquanto motor de motivação pessoal. Pessoa sonhava com uma sociedade idílica, na qual ideias, cultura e alma estivessem representadas; uma sociedade reconstruída através da poesia e do conhecimento na sua forma abstracta. Quanto mais a estudava, mais sentido fazia eu acabar a investigação com a obra de Pessoa. As condições criaram-se e defendi a minha tese em Maio deste 2013, acabando o mestrado com Distinção.»

“Mensagem em Braille” quer – acrescenta Bruno Brites – «resgatar não só o formato “livro” mas também celebrar a importância do Braille enquanto símbolo de informação acessível e veículo de conhecimento; chamar a atenção para conceitos de inclusão social, juntando pessoas cegas com pessoas sem deficiência visual; e – por fim – celebrar uma das mais importantes obras da poesia portuguesa. Enquanto designer gráfico, investigador, estudante e indivíduo, a «Mensagem» de Fernando Pessoa reflecte também a atitude que me levou a começar todo este processo.»

Movido por uma perspectiva de design gráfico, o projecto indica também um caminho para explorar a estética do Braille nas capas de livros, estabelecendo uma ligação simbólica entre o livro e o leitor. “Salvar” o formato livro e voltar inequivocamente a ele promove ainda, segundo Bruno Brites, «uma discussão saudável sobre as práticas de leitura e os novos gadgets que a tecnologia nos oferece quase todos os dias.»

Ao trabalhar em conjunto com portadores de deficiências visuais, Bruno Brites teve a possibilidade de «conectar a realidade visual com interacções tácteis, criando uma ponte entre o conceito de “design para a inclusão social” e uma nova experiência para as pessoas cegas. A utilização de materiais diversos no projecto, como por exemplo papel, cortiça e cerâmica, traz à cena uma nova interacção táctil para as pessoas com deficiência visual, fazendo do processo de leitura algo mais interessante e – acima de tudo – motivador», remata.

Bruno Brites não poupa nos agradecimentos às múltiplas contribuições que permitiram que o protótipo do seu projecto visse a luz do dia, todas para ler, em pormenor, aqui.

A fechar, convém recordar que “Mensagem em Braille” é ainda um projecto, apesar de já em protótipo. A publicação formal é o novo patamar procurado, que esbarra – como sempre – nas questões de financiamento. Conforme adianta Bruno Brites, «estamos a melhorar e a rectificar algumas questões referentes à construção do livro, com o objectivo de fazer uma pequena produção. O meu interesse, juntamente com o da ACAPO, é que ela chegue ao maior número de pessoas, independentemente de ser através da produção de mais exemplares, da realização de uma exposição, de apresentações ou artigos académicos.»

Optimista, Bruno Brites confirma que todas estas plataformas estão a ser exploradas, «com o objectivo não só de promover o projecto, mas principalmente de divulgar o Braille e a sua importância na vida das pessoas cegas. E acrescentando uma nova mensagem à “Mensagem” de Fernando Pessoa, celebrando assim os 80 anos da obra, que está bem viva, nesta investigação.»

Apoios, mecenas, patrocínios, são assim o que agora se procura, para dar a esta magnífica “Mensagem em Braille” o corpo que tanto merece, às centenas ou milhares de exemplares. Um homem, Bruno Brites, sonhou. Que a obra (re)nasça, em 2014, são os meus votos e empenho! Se forem também os vossos, caríssimas e caríssimos leitores de O Meu Pessoa, partilhem esta história – e passem a… mensagem ;-).

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“Em Flagrante Delitro”, ou Uma Segunda História de Amor

O lançamento, em Junho deste ano, do livro «Fernando Pessoa & Ofélia Queiroz – Correspondência Amorosa Completa 1919-1935» (Ed. Capivara, Brasil), trouxe de volta à ribalta o conturbado relacionamento, a duas etapas, entre o mais universal dos escritores portugueses e a sua única namorada oficialmente (re)conhecida.

Os dois conheceram-se em Outubro de 1919, num dos escritórios onde Pessoa trabalhava e para o qual Ofélia fora candidatar-se a uma posição de dactilógrafa (na empresa Félix, Valladas & Freitas, Ld.ª, à Rua da Assunção, número 42, 2.º andar). Em Novembro, já trocavam bilhetinhos, nos quais Fernando tratava Ofélia por ‘bebé'”. Mas a corte do “Íbis” e da “Vespa” foi demasiado curta: a 29 de Novembro de 1920, a sobejamente conhecida carta de ruptura de Fernando Pessoa dita o final do namoro.

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Este será, no entanto, “apenas” o final da primeira fase do relacionamento sentimental entre ambos. Com efeito, o destino conspira para voltar a juntá-los, quase dez anos depois, “por culpa” de uma fotografia, a célebre imagem do “flagrante delitro”. Tirada no Abel Pereira da Fonseca, na baixa lisboeta, a foto mostra Pessoa sorvendo com gosto um copo de vinho, na pequena transgressão que se presume ser o fazê-lo “em horário de trabalho”.

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Podemos datar oficialmente, a 11 de Setembro de 1929, o início da segunda fase do namoro, graças à carta que Fernando escreve a Ofélia.

Mas é esta quem conta a história ao pormenor, num depoimento que em boa hora a sua sobrinha-neta (Maria da Graça Queiroz) a convenceu a escrever, em 1978, para memória futura:

“Um dia, o meu sobrinho Carlos Queirós trouxe para casa aquele famoso retrato do Fernando a beber vinho no Abel Pereira da Fonseca (tirado pelo Manuel Martins da Hora). Trazia uma dedicatória: «Carlos: isto sou eu no Abel, isto é, próximo já do Paraíso Terrestre, aliás perdido. Fernando. Dia 2/9/29» Achei muita graça, como é natural, e disse ao meu sobrinho que gostava de ter uma para mim. O Carlos disse-lhe, e passado pouco tempo ele enviou-me uma fotografia igual com esta dedicatória: « Fernando Pessoa em flagrante delitro.»
Escrevi-lhe a agradecer e ele respondeu-me. Recomeçámos então o «namoro». Isto em 1929. Eu já não trabalhava nessa altura e continuava a viver em casa de minha irmã no Rossio.
O Fernando estava diferente. Não só fisicamente, pois tinha engordado bastante, mas, e principalmente, na sua maneira de ser. Sempre nervoso, vivia obcecado com a sua obra. Muitas vezes dizia que tinha medo de não me fazer feliz, devido ao tempo que tinha de dedicar a essa obra. Disse-me um dia : «Durmo pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho que escrever, e é uma maçada porque depois o Bebé não pode dormir descansado.» Ao mesmo tempo receava não poder dar-me o mesmo nível de vida a que eu estava habituada. Ele não queria ir trabalhar todos os dias, porque queria dias só para si, para a sua vida, que era a sua obra. Vivia com o essencial. Todo o resto lhe era indiferente. Não era um ambicioso nem vaidoso. Era simples e leal.
Dizia-me: «Nunca digas a ninguém que sou poeta. Quanto muito, faço versos.»

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Nos 100 Anos de «O Marinheiro»

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No “ano de todas as efemérides”, onde encontramos o 125º aniversário de nascimento de Fernando Pessoa, os 20 anos da Casa Fernando Pessoa e o centenário da publicação do primeiro fragmento do «Livro do Desassossego», é tempo de mais uma celebração: o Centenário de «O Marinheiro».

O “drama estático em um quadro” foi escrito – ou, pelo menos, datado – a 11 e 12 de Outubro de 1913. «O Marinheiro» nunca chegou a ser representado em vida de Fernando Pessoa, mas foi a primeira obra que o autor se empenhou em publicar, nomeadamente nas revistas “A Águia” e “Renascença”. Malogradas essas tentativas, Fernando Pessoa viria a publicar «O Marinheiro» apenas dois anos depois, na revista Orpheu, ao número um.

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A clara intenção de Pessoa em apresentar-se como dramaturgo na mítica revista do movimento modernista português só espantará quem não conhecer a fundo as suas opções, claramente manifestadas, por exemplo, em cartas como a que escreveu a Adolfo Casais Monteiro, a 20 de Janeiro de 1935: “[…]O que sou essencialmente — por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja — é dramaturgo. O fenómeno da minha despersonalização instintiva a que aludi em minha carta anterior, para explicação da existência dos heterónimos, conduz naturalmente a essa definição.”

Com efeito, muito antes do “Dia Triunfal” de 8 de Março de 1914; muito antes do “drama em gente” da heteronímia; foi com «O Marinheiro» que o mais universal dos escritores portugueses escolheu condensar todas as suas obsessões. A peça ocupa um lugar único na produção literária pessoana: foi, de entre mais de vinte projectos teatrais, o único texto dramático que Fernando Pessoa completou e editou em vida. Além disso, foi um projecto que acompanhou Pessoa ao longo de todos os seus dias. A 4 de Março de 1915, em carta a Armando Cortes-Rodrigues, anunciando Orpheu I, Pessoa escreve que “O meu drama estático «O Marinheiro» está bastante alterado e aperfeiçoado; a forma que v. conhece é apenas a primeira e rudimentar. O final, especialmente, está muito melhor. Não ficou, talvez, uma coisa grande, como eu entendo as coisas grandes; mas não é coisa de que eu me envergonhe, nem — creio — me venha a envergonhar.”

No fabuloso jogo da heteronímia, onde o diálogo entre Pessoa e as suas criações (ou até das suas criações, entre elas) não cessa, é na sequência da publicação de «O Marinheiro», em Orpheu, que Álvaro de Campos dedica a Fernando Pessoa, com o mais cáustico humor, as seguintes linhas:

A FERNANDO PESSOA, DEPOIS DE LER O SEU DRAMA ESTÁTICO
«O MARINHEIRO» EM «ORPHEU I»

       Depois de doze minutos   
       Do seu drama O Marinheiro,   
       Em que os mais ágeis e astutos   
       Se sentem com sono e brutos,   
       E de sentido nem cheiro,   
       Diz uma das veladoras   
       Com langorosa magia   
       
De eterno e belo há apenas o sonho. Por que estamos nós falando ainda?      

     Ora isso mesmo é que eu ia   
     Perguntar a essas senhoras…  
 
In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002

 

Quinze (!!!) anos depois de Orpheu, agora em carta a João Gaspar Simões, a 10 de Janeiro de 1930, Pessoa volta a referir-se ao seu projecto, que vinha sendo requisitado pela equipa da revista Presença: “Respondo agora à sua pergunta sobre o publicarem na Presença ou em separata algumas das minhas antigas produções. Podem vocês dispor como quiserem das duas Odes e do Opiário do Álvaro de Campos e da minha Chuva Oblíqua – isto pelo que diz respeito a inserções no Orpheu. O Marinheiro está sujeito a emen­das: peço que, por enquanto, se abstenham de pensar nele. Se quiserem, poderei, feitas as emendas, dizer quais são: ficará então ao vosso dispor, como o estão as composições a que, como tais, acima me refiro.”

Tamanha era a dedicação de Fernando Pessoa a «O Marinheiro» que já nos anos 50 do século passado estavam descobertas e publicadas (nomeadamente por ‘Petrus’) as provas dos seus esforços de tradução da obra para Francês. Décadas mais tarde, o espólio da Biblioteca Nacional revelou-nos também notas de Pessoa ortónimo – e do heterónimo Álvaro de Campos – em Inglês, glorificando «O Marinheiro» como epítome do Sensacionalismo e uma produção literária capaz de criar “o terror intelectual mais subtil que jamais se viu”.

Definido por Pessoa como um “drama estático”, «O Marinheiro» não só prescinde como recusa todos os jogos de cena, designadamente o movimento. Numa torre de um castelo, numa dimensão fora do espaço e do tempo – ou para além destes – três mulheres velam, noite fora, o corpo de uma quarta. Procurando consumir as horas difíceis que as aguardam, até porque sabem que “ainda não deu hora nenhuma”, as três veladoras contam histórias e acabam por desembocar na evocação de um marinheiro, náufrago numa ilha deserta, que constrói para si uma realidade ficcional mais poderosa e real que a realidade. O marinheiro criado e invocado pelas três mulheres rapidamente as absorve nas teias da ficção, deixando-as suspensas entre passado e futuro, num hipnótico poema visual que confunde sonhadoras e sonhado.

É fácil especular como a participação de Fernando Pessoa em revistas da especialidade – e as críticas demolidoras que chega a assinar, para algumas obras tradicionais da época – o tenham empurrado para escrever algo que seria, no seu entender, “a peça perfeita”. Na verdade, Pessoa começa, a 1 de Março de 1913, a sua colaboração em Teatro: revista de crítica, que conhecerá quatro números. O seu director, Boavida Portugal, funda, em Novembro do mesmo ano, uma revista parecida, Teatro: jornal de arte, onde Pessoa também colaborará.

Enquanto “teatro do êxtase”, «O Marinheiro» apresenta-nos um Pessoa ligado aos simbolistas e ao movimento saudosista português, bebendo claramente inspiração no dramaturgo, poeta e ensaísta belga de língua francesa, Maurice Maeterlinck – mas partindo, daí, para aquilo que Pessoa chamaria o “sensacionalismo integral” que viria, aliás, a desembocar em Pessoa na criação dos seus três heterónimos “principais”. A existência prévia de três “veladoras” fica, assim, ainda mais claramente longe de uma simples coincidência. As veladoras são todas a mesma, não se distinguem: ajudam-se, são solidárias em fugir à vida, no criar o sonho.

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Ao recusar todas as regras básicas teatrais do teatro naturalista, mantendo apenas uma mise-en-scène espiritual, «O Marinheiro» é uma obra-limite, minimalista, provocatória e verdadeiramente de vanguarda. Também por isso, na sua complexidade, no seu distanciamento da realidade, tem um fascínio e desafios próprios, adequados à contemporaneidade, mas intimidatórios para o grosso dos encenadores e das actrizes.

Nas celebradas «Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação» (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática, 1966.) é o próprio Fernando Pessoa quem posiciona, com assertivo rigor, tanto a sua peça como os seus companheiros de letras, face ao “pai espiritual” belga:

O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Provavelmente é difícil destrinçar a parte de cada um na origem do movimento e, com certeza, absolutamente inútil determiná-lo. O facto é que ambos lhe deram início. Mas cada sensacionista digno de menção é uma personalidade à parte e, naturalmente, todos exerceram uma actividade recíproca. Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro estão mais próximos dos simbolistas. Álvaro de Campos e Almada Negreiros são mais afins da moderna maneira de sentir e de escrever. Os outros são intermédios. Fernando Pessoa padece de cultura clássica. Nenhum sensacionista foi mais além do que Sá-Carneiro na expressão do que em sensacionismo se poderá chamar sentimentos coloridos. A sua imaginação — uma das mais puras na moderna literatura, pois ele excedeu Poe no conto dedutivo em A Estranha Morte do Professor Antena —corre desenfreada por entre os elementos que os sentidos lhe facultaram, e o seu sentido da cor é dos mais intensos entre os homens de letras. Fernando Pessoa é mais puramente intelectual; a sua força reside mais na análise intelectual do sentimento e da emoção, por ele levada a uma perfeição que quase nos deixa com a respiração suspensa. Do seu drama estático, O Marinheiro, disse uma vez um leitor: «Torna o mundo exterior inteiramente irreal» e, de facto, assim é. Nada de mais remoto existe em literatura. A melhor nebulosidade e subtileza de Maeterlinck é grosseira e carnal em comparação. José de Almada-Negreiros é mais espontâneo e rápido, mas nem por isso deixa de ser um homem de génio. Ele é mais novo do que os outros, não só em idade como também em espontaneidade e efervescência. Possui uma personalidade muito distinta — para admirar é que a tivesse adquirido tão cedo.

Fernando Pessoa, 1916

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Em Portugal, duas produções marcam, sem dúvida, tempos diversos mas cruciais da vida de «O Marinheiro». Um primeiro destaque deve ser dado à 111ª Produção da Companhia de Teatro de Almada, estreada em Abril de 2008, com encenação do francês Alain Ollivier e as interpretações de Cecília Laranjeira, Maria Frade e Teresa Gafeira. Conforme testemunho de Alain Ollivier (que dois anos antes já havia montado a peça em França), o seu interesse por «O Marinheiro» nasceu da inspiração poética que perpassa todo o texto e “permite conhecer de onde vem a inspiração de Fernando Pessoa, que com 24 anos escreveu esta peça em dois dias. Mostra-nos a sua intuição, a sua visão daquilo que viria a ser a sua vida de artista, de tormento e de sofrimento.”

 

Mais de quarenta anos antes, o segundo destaque só pode naturalmente ser entregue ao mítico Grupo Fernando Pessoa, criado em Novembro de 1960, como resultado das comemorações do 25º aniversário da morte de Fernando Pessoa, realizadas pela Casa da Comédia no Centro Nacional de Cultura. Com encenação de Fernando Amado e direcção de João d’Ávila, «O Marinheiro» contou então com as interpretações das jovens Glória de Matos, Isabel Ruth e Clara Joana. Conforme nos conta a memória de João d’Ávila, foi um espectáculo onde Fernando Pessoa “brilhou como jóia rara de requintado gosto, no mais belo poema dramático, jogado entre três personagens femininas, que falam e sonham com ‘O Marinheiro’ na mais delirante e poética sonoridade que alguma vez a língua portuguesa alcançara na sua musicalidade, onde o som da palavra, clarifica e ilumina o significado, tornando o real, sonho e onde o sonhado é ele próprio o Marinheiro, personagem inexistente, mas presente na acção mágica do Teatro musicado, através das vozes de três mulheres veladoras. O Marinheiro é o V Império.”

Em «O Marinheiro», há oposição entre a vida e o sonho. Assistimos, ao longo da peça, à hesitação entre querer fugir da vida e um ritual em que, através do sonho, as veladoras querem voltar ao Eu Primordial. O sonho das veladoras é extremamente complexo: é passado e é divinatório, uma regressão que nos projecta para o futuro. O Marinheiro, algures entre o Céu e a Terra, é poder criador: – “Por que não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?…”

Em última análise, o marinheiro talvez seja o próprio Fernando Pessoa, apostado em concentrar realidade e acção, no sonho de viver.

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Fontes:

– «O Marinheiro – Fernando Pessoa» (Introdução de Teresa Rita Lopes), Livros de Areia, Lisboa, 2008

– «O Marinheiro – Drama estático em um quadro»  (Introdução e notas de Petrus), Arte & Cultura, Porto, 1966

– «O Marinheiro  (Introdução e notas de Cláudia F. Souza), Ática/Babel, Lisboa, 2010

 

Documentação Acessória online:

– Pessoa e o Teatro de Êxtase, Teresa Rita Lopes

Auto-tradução e experimentação interlinguística na génese d’O Marinheiro de Fernando Pessoa, Claudia J. Fischer

O Marinheiro. Chave do teatro mental de Fernando Pessoa, Gisele Centenaro

Elementos do Drama em O Marinheiro, Debora Oliveira

– Um Teatro que sabe o que significa narrar, Maria João Brilhante

Outono em Desassossego

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Imagem: Madeira Viva

FERNANDO PESSOA/BERNARDO SOARES, «Livro do Desassossego»

Fragmento 320, 29/1/1932 (misto, manuscrito/dactilografado).

Depois que os últimos calores do estio deixavam de ser duros no sol baço, começava o outono antes que viesse, numa leve tristeza, prolixamente indefinida, que parecia uma vontade de não sorrir do céu. Era um azul umas vezes mais claro, outras mais verde, da própria ausência de substância da cor alta; era uma espécie de esquecimento nas nuvens, púrpuras diferentes e esbatidas; era, não já um torpor, mas um tédio, em toda a solidão quieta por onde nuvens atravessam (1).

A entrada do verdadeiro outono era depois anunciada por um frio dentro do não-frio do ar, por um esbater-se das cores que ainda se não haviam esbatido, por qualquer coisa de penumbra e de afastamento no que havia sido o tom das paisagens e o aspecto disperso das coisas. Nada ia ainda morrer, mas tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se virava em saudade para a vida (2).

Vinha, por fim, o outono certo: o ar tornava-se frio de vento; soavam folhas num tom seco, ainda que não fossem folhas secas; toda a terra tomava a cor e a forma impalpável de um paul incerto. Descobria-se o que fora sorriso último, num cansaço de pálpebras, numa indiferença de gestos. E assim tudo quanto sente, ou supomos que sente, apertava, íntima, ao peito a sua própria despedida. Um som de redemoinho num átrio flutuava através da nossa consciência de outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir verdadeiramente a vida.

Mas as primeiras chuvas de inverno, vindas ainda no outono já duro (3), lavavam estas meias tintas como sem respeito. Ventos altos chiando em coisas paradas, barulhando coisas presas, arrastando coisas móveis, erguiam, entre os brados irregulares da chuva, palavras ausentes de protesto anónimo, sons tristes e quase raivosos de desespero sem alma.

E por fim o outono cessava (4), a frio e cinzento. Era um outono de inverno o que vinha agora, um pó tornado lama de tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa do que o frio do inverno traz de bom – verão duro findo, primavera por chegar, outono definindo-se em inverno enfim. E no ar alto, por onde os tons baços já não lembravam nem calor nem tristeza, tudo era propício à noite e à meditação indefinida.

Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje, se o escrevo, e porque o lembro. O outono que tenho é o que perdi.

[(1) por onde o que for névoa se esfumava; (2) o mundo; (3) claro; (4) minguava]

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 Fragmento 202, 14/9/1931 (dactilografado).

     Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vieram, nos acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do céu amplo, certos retoques de brisa fria que anunciavam o outono. Não era ainda o desverde da folhagem, ou o desprenderem-se das folhas, nem aquela vaga angústia que acompanha a nossa sensação da morte externa, porque o há-de ser também a nossa. Era como um cansaço do esforço existente, um vago sono sobrevindo aos últimos gestos de agir. Ah, são tardes de uma tão magoada indiferença, que, antes que comece nas coisas, começa em nós o outono.

     Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos, e o mesmo é verdade do verão ou do estio; mas o outono lembra, por o que é, o acabamento de tudo, e no verão ou no estio é fácil, de olhar, que o esqueçamos. Não é ainda o outono, não está ainda no ar o amarelo das folhas caídas ou a tristeza húmida do tempo que vai ser inverno mais tarde. Mas há um resquício de tristeza antecipada, uma mágoa vestida para a viagem, no sentimento em que somos vagamente atentos à difusão colorida das coisas, ao outro tom do vento, ao sossego mais velho que se alastra, se a noite cai, pela presença inevitável do universo.

     Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará do que usou sentimentos e luvas, do que falou da morte e da política local. Como é a mesma luz que ilumina as faces dos santos e as polainas dos transeuntes, assim será a mesma falta de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns terem sido santos e outros usadores de polainas.

     No vasto redemoinho, como o das folhas secas, em que jaz indolentemente o mundo inteiro, tanto faz os remos como os vestidos das costureiras, e as tranças das crianças louras vão no mesmo giro mortal que os ceptros que figuraram impérios. Tudo é nada, e no átrio do Invisível, cuja porta aberta mostra apenas, defronte, uma porta fechada, bailam, servas desse vento que as remexe sem mãos, todas as coisas, pequenas e grandes, que formaram, para nós e em nós, o sistema sentido do universo. Tudo é sombra e pó mexido, nem há voz senão a do som que faz o que [o] vento ergue e arrasta, nem silêncio senão do que o vento deixa. Uns, folhas leves, menos presas de terra por mais leves, vão altas do rodopio do Átrio e caem mais longe que o círculo dos pesados. Outros, invisíveis quase, pó igual, diferente só se o víssemos de perto, faz cama a si mesmo no redemoinho. Outros ainda, miniaturas de troncos, são arrastados à roda e cessam aqui e ali. Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-á a porta do fundo e tudo o que fomos – lixo de estrelas e de almas – será varrido para fora da casa, para que o que há recomece.

     Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem sorriso que vai orlando de amarelo morto o arredondamento confuso das poucas nuvens do poente. Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anónima de tudo. O outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão antecipada de todos os sonhos. Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fazendo som de vida nas lajes limpas que um sol angular doura de fim não sei onde.

     Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz – tudo isso irá no outono, como os fósforos gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papéis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as religiões todas, as filosofias com que brincaram, fazendo-as, as crianças sonolentas do abismo. Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao patrão Vasques que também tive, tudo vai no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do outono. Tudo no outono, sim, tudo no outono…

Alberto de Lacerda: O Homem Que Levou Fernando Pessoa Aos Microfones da BBC

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Carlos Alberto Portugal Correia de Lacerda (20 de Setembro de 1928 — 26 de Agosto de 2007) faria, hoje, 85 anos. Poucos conhecem o seu nome de escritor, Alberto de Lacerda – e ainda menos conhecem a sua poesia que tantos dos seus pares classificaram de admirável. A homenagem de O Meu Pessoa é, hoje, para ele – e para o papel que desempenhou, na divulgação de Fernando Pessoa.

Alberto de Lacerda nasceu em Moçambique, em 1928, concluiu em Portugal o ensino secundário, em 1946; e partiu pouco depois, em 1951, para Londres, onde editou parte substancial da sua obra, contactou e fez amizade com muitos grandes da cultura mundial e trabalhou como jornalista para a secção portuguesa da BBC.

Por entre o tanto de mais relevante que haveria a lembrar sobre a sua vida e obra, é esta passagem do escritor pela rádio que destaco, por motivos óbvios: aos microfones da BBC, Alberto de Lacerda foi o responsável pela primeira apresentação de Fernando Pessoa ao público mundial da emissora inglesa.

Estávamos em Fevereiro de 1956, conforme conta Luís Amorim de Sousa, herdeiro do espólio de Alberto de Lacerda, hoje depositado na Fundação Mário Soares. Alberto de Lacerda conduzia então o primeiro (e, até hoje, único) programa em inglês inteiramente dedicado à poesia portuguesa. Foi pela sua voz que o público britânico ouviu finalmente falar de um “desconhecido” poeta português, criador de «Mensagem» e várias vezes “outrado” nessa coisa estranha dos heterónimos.

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O ponto mais comovente desta história é o facto de o programa ter sido ouvido por alguém muito especial, então a viver em Slough, no condado de Buckinghamshire. Comovido pela homenagem, esse alguém escreveu a Alberto de Lacerda, apresentando-se como L. M. Rosa: nada mais, nada menos que Luís Miguel Rosa, meio-irmão de Pessoa e que fazia a sua vida no Reino de Sua Majestade, desde os tempos da faculdade.

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Luís Miguel Rosa, o “Lhi”, como era tratado na família, insistiu várias vezes, sempre ingloriamente, para que Fernando Pessoa se mudasse para Inglaterra, ou que, pelo menos, envidasse esforços para organizar a sua obra de forma a ser publicado naquele país. Luís Miguel Rosa chegou mesmo a oferecer-se para ser o agente literário do irmão Fernando para o mercado inglês.

A vida nunca quis que assim fosse – e Fernando Pessoa morreria, aliás, pouco tempo depois da visita do seu irmão a Portugal, em lua-de-mel. Mas “eu, que me comovo por tudo e por nada”, faço-o especialmente aqui, ao pensar na alegria, orgulho e memórias que Alberto de Lacerda, aos seus microfones da rádio, deu ao irmão mais novo de Pessoa. E também na alegria que Alberto de Lacerda deu ao espírito do próprio Fernando Pessoa, que em 1956 finalmente teve a sua poesia ouvida na BBC, a emissora oficial do também tão seu “império britânico”.

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“Fernando Pessoa em Espanha” – A Exposição

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Inaugura este 12 de Setembro, na Biblioteca Nacional de Portugal (Galeria Mezanino), a exposição “Fernando Pessoa em Espanha”. A mostra, comissariada por Antonio Sáez Delgado e Jerónimo Pizarro , prolonga-se até 31 de Dezembro e tem entrada livre.

 

A presença de Fernando Pessoa em Espanha tem qualquer coisa de velho fantasma familiar. Pessoa nunca se interessou demasiado pela cultura espanhola, mas entrou em contacto com alguns dos escritores andaluzes do seu tempo. Nunca viajou ao país vizinho, mas escreveu sobre a estrutura de Espanha e sobre o seu papel no contexto da Ibéria. Nunca chegou a conhecer nem a dialogar por escrito com Miguel de Unamuno, mas escreveu textos em que polemiza com o autor de Por tierras de Portugal y de España.

Contudo, visto de uma outra perspectiva, poderemos afirmar que Fernando Pessoa manifestou algum interesse por Espanha e pelos seus escritores, como demonstram os seus textos ibéricos, e também poderemos afirmar que os escritores espanhóis do seu tempo manifestaram alguma paixão pelo poeta a partir de 1923, data da primeira tradução de um poema de Fernando Pessoa em Espanha.

Nesse ano começa a lenta mas sólida recepção do poeta no país vizinho, consolidada após à sua morte graças ao esforço de escritores e críticos dos anos quarenta e cinquenta e, sobretudo, graças à antologia da sua poesia que publica, em 1962, o poeta mexicano Octavio Paz, que faz estalar o boom pessoano em Espanha, a partir dos anos oitenta do século XX.

De então até à actualidade, o nome de Pessoa passou a referência inquestionável entre os escritores espanhóis e a sua presença é constante no meio literário espanhol, em todas as suas diferentes manifestações culturais e em todas as suas línguas.

A exposição Fernando Pessoa em Espanha pretende percorrer este caminho e mostrar quem foi e quem é Fernando Pessoa no âmbito da cultura espanhola, através de cartas, textos e livros. Um Pessoa, sem dúvida, menos conhecido, menos visto, que documenta a dimensão ibérica do seu trabalho.

Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal