“As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal”

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O livro “As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal”, está finalmente disponível em todas as livrarias portuguesas, numa edição da histórica Parceria António Maria Pereira, a mesma casa editorial portuguesa que editou, em 1934, a “Mensagem” de Fernando Pessoa.

Esta obra começa por ser um acto de amor, desde logo, pelo tempo que o seu autor teve de aguardar até encontrar quem apostasse devidamente no seu trabalho. Na verdade, “As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal” nasceu, enquanto projecto em curso, em Outubro de 2007. E foram precisos quase 10 anos de exposição na Internet para chegar à forma de livro.

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A forma, aliás, é ela mesma um acontecimento. O livro agora lançado tem as dimensões de 24 x 34 cm, um tamanho agigantado que permite aos desenhos e ao texto um respirar perfeito, nas suas 176 páginas. Estas dimensões, a elegância, a cor profusa e a irrepreensível qualidade e gramagem do papel dão-nos outra incrível surpresa: a editora conseguiu criar um produto quase luxuoso, dando-lhe anda assim um preço de venda ao público tão acessível quanto os 23,90 €.

“As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal”, tem como autor principal Miguel Moreira, que escreve o argumento e desenha as imagens sequenciais, coadjuvado por Catarina Verdier, responsável pela colorização. É um livro de BD que reputamos especialmente (embora não exclusivamente) “para adultos”, pela densidade e especificidades do texto.

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Depois de decidir-se a abordar o universo pessoano em BD, Miguel Moreira hesitou confessadamente no que tocava a que história contar. Foi após a leitura do texto pessoano “António Botto e o Ideal Estético em Portugal”, publicado em 1922 e subordinado ao tema da criação artística, que o lado biográfico de Pessoa se apresentou inevitável ao autor da obra agora editada.

Apresentando-se como uma biografia pessoana através da linguagem (supostamente) mais acessível da BD, este livro vai muito para além de outras novelas gráficas, já que desce a pormenores tão importantes quanto a génese do proto-heterónimo Charles Robert Anon, ou a descoberta que Pessoa faz do poeta americano Walt Whitman, e da sua obra seminal “Leaves of Grass“.

Recusando facilitismos, “As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal” dedica-se a focar todos os principais fenómenos de despersonalização do “drama em gente” pessoano, com espaço naturalmente privilegiado para Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. O destaque maior, no entanto, está guardado para o semi-heterónimo Bernardo Soares, através do qual Fernando Pessoa escreveu o “Livro do Desassossego”.

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Ao cinzento Bernardo Soares, quis Miguel Moreira dedicar uma atenção “outra”, imaginando um dia na vida do apagado empregado de escritório na Rua dos Douradores que foi o seu mundo; e apresenta-o sob a forma de um “livro dentro do livro”, a que nem falta título: “As Aventuras de Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa…”. Neste segmento, as palavras desaparecem e mostram-se apenas os elementos visuais mais sugestivos e as acções passíveis de representação e compreensão sem os textos originais do “Livro do Desassossego”.

Por tudo o que atrás deixámos dito, a recomendação é óbvia: “As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal”, merece um lugar especial na biblioteca lá de casa. Para muitas horas preciosas de aprendizagem e prazer.

Madonna com Fernando Pessoa – e não é que fica mesmo bem?

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Madonna publicou, na passada segunda-feira, 9 de Novembro, uma citação de Fernando Pessoa. A cantora norte-americana destacou o escritor português na sua conta oficial do Instagram. O post publicado por Madonna reproduz fielmente a tradução de Richard Zenith para a seguinte citação do “Livro do Desassossego”:

“Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugna-la-íamos se a tivéssemos. O perfeito é o desumano porque o humano é imperfeito”.

Por feliz coincidência, esta citação é uma das que se encontra em destaque também em Portugal, na Casa Fernando Pessoa.

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À hora em que escrevemos este nosso texto, o post de Madonna leva já mais de 42.000 “likes”. Se considerarmos o número de seguidores da conta de Instagram da cantora, é legítimo admitir que Madonna fez o favor de levar o nome de Fernando Pessoa e do seu “Book of Disquiet” a um universo potencial de mais de cinco milhões de internautas.

Para os amantes de Pessoa que ficaram felizes com esta “notícia” (como é naturalmente o nosso caso), mas especialmente para todos aqueles que se apressaram a menosprezar e a rebaixar a importância deste interessante factóide, vale a pena frisar o seguinte:

Fora do universo da Lusofonia (e aqui com destaque para Portugal e Brasil, porque os PALOP, infelizmente, dedicam a Pessoa pouco mais que um quase desconhecimento), Fernando Pessoa continua a ter muito para ser mostrado, lido e conhecido. E se a posição da obra pessoana é já privilegiada em países como Espanha, França, Bélgica, Holanda, Itália, Alemanha, Grécia, Israel, México, Colômbia, Venezuela, Argentina, Chile, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Noruega, isso está longe de acontecer nos países anglófonos.

No Reino Unido, nos EUA, na África do Sul, na Nova Zelândia e na Austrália, o Fernando Pessoa que tinha o Inglês como segunda língua mãe – e que escreveu que se desunhou nesse mesmo Inglês – continua a ser pouco mais que uma curiosidade literária de elites. O Canadá é um caso flagrante deste estado de coisas: a província francófona do Quebec tem Pessoa como referência cultural. A secção anglófona do Canadá, pelo contrário, desconhece genericamente Pessoa.

O post de Madonna, que tantos já se apressaram a apoucar, veio dar a Fernando Pessoa uma visibilidade anglófona e mundial equivalente a muitos congressos e livros. Goste-se ou não. E goste-se ou não da cantora norte-americana, das suas opiniões e excentricidades, a verdade dos factos é esta.

Fernando Pessoa Para Todas as Pessoas

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Já à venda em todas as livrarias portuguesas, o meu novo trabalho Fernando Pessoa para todas as pessoas vai ser lançado esta quinta-feira, dia 5 de Novembro, às 19h00, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.

No lançamento, vestirei a pele de Fernando Pessoa, com a interpretação de uma colagem de textos pessoanos. São convidados especiais deste evento a cantora MAFALDA ARNAUTH (que conversará comigo sobre a importância nacional e mundial do legado de Fernando Pessoa), a actriz SUZANA BORGES (que lerá o poema ortónimo “Un Soir à Lima”) e o artista plástico ANDRÉ MARIANO (que pintará Fernando Pessoa em tela, com recurso apenas aos seus dedos nus). A entrada é livre, no limite dos lugares disponíveis.

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“Fernando Pessoa Para Todas as Pessoas” condensa o essencial do mais universal dos escritores portugueses e destina-se literalmente a todas as pessoas: dos estudantes e professores do ensino secundário até aos académicos e universitários, mas principalmente ao público em geral. É uma edição Verso de Kapa, com ilustração de Maria Bárbara Jarro.

O capítulo 1, “Um Fernando, tantas pessoas” é, acima de tudo, uma visão geral da obra ímpar de Pessoa, que se cruza com uma abordagem à vida do escritor, num pendor mais pessoal.

No capítulo 2, dos “marcos”, quis identificar, de forma simples e essencialmente resumida, 55 etapas bem definidas da vida e obra de Fernando Pessoa, capazes de esculpir a sua personalidade própria e a evolução da obra que construiu. Esta informação vai desde o primeiro poema publicado por Pessoa até, nomeadamente, ao(s) significado(s) das suas últimas palavras, escritas à beira da morte.

A família, na medida em que esteve sempre presente na vida de Pessoa, é objecto do capítulo 3. Estão aqui os pais, os irmãos, os sobrinhos, o estrutural primo Mário, a tia Anica, a avó Dionísia e o tio Taco, entre tantos outros.

Os amigos de Fernando Pessoa, suas âncoras de vida na idade adulta em Lisboa, constituem o capítulo 4. Numa extensa lista, decidi usar um “truque” de texto para indicar, a negrito, aqueles que puderam estar presentes no funeral do escritor. E entre uns e outros, destaquei biograficamente 11: Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, o barbeiro Manasses, o Trindade da leitaria, Francisco Peixoto Bourbon, António Botto, Alberto da Cunha Dias, Armando Cortes-Rodrigues, Luis de Montalvor, Augusto Ferreira Gomes e Luis Pedro Moitinho de Almeida.

No capítulo 5, abordo as paixões de Pessoa, carnal e sentimentalmente falando. Apesar do seu óbvio lugar de destaque, Ophélia Queiroz não é, de todo, a única referência. E há surpresas.

O capítulo 6, o mais curto deste livro, aborda esquematicamente as influências literárias mais importantes que marcaram Fernando Pessoa. Foram tantas e tão complexas que obrigariam a uma colecção de vários volumes. Aqui, apenas estão os seus nomes e os critérios de selecção, desafiando os meus leitores – e os de Fernando Pessoa – a novas leituras e descobertas.

Na Lisboa que foi o seu “lar”, mais que uma simples cidade, Fernando Pessoa dividiu-se entre uma complexa rede de cafés, restaurantes, escritórios, livrarias, alfarrabistas, casas, quartos e estabelecimentos comerciais. São estes que fazem o capítulo 7.

A partir do capítulo 8, mergulho na análise simplificada do universo literário pessoano, seus rumos, biografias e técnicas. Primeiro com o ortónimo, Fernando Pessoa ele-mesmo; e depois com os heterónimos, no capítulo 9, tal qual o escritor os elencou: Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Bernardo Soares.

Na senda dos anteriores, o capítulo 10 explora as “personagens fictícias” de Pessoa. Historicamente, começou por ser identificada uma vintena delas, passando posteriormente a lista às 72, às 83, às 106 e, mais recentemente, às 136 (havendo até quem defenda que a lista pode ultrapassar as 200!). Privilegiei, nas 11 que destaco biobibliograficamente, as personagens fictícias de Fernando Pessoa a quem o escritor entregou missões mais importantes; deu características mais originais; e/ou que possuem obra escrita mais alargada e/ou relevante.

Porque Fernando Pessoa não se poupou a fazer escritos auto-biográficos e de interpretação pessoal, dei-lhe directamente a palavra no capítulo 11, “Pessoa por ele mesmo”. Alguns dos textos nos quais, no meu entender, o escritor melhor se define são aqui citados. Os fragmentos escritos originariamente em inglês são publicados com tradução minha.

Os seguintes dois capítulos, 12 e 13, respectivamente “perguntas frequentes” e “curiosidades”, são essencialmente destinados aos leitores iniciados: contribuem para mostrar o homem além do escritor – e desfazer alguns dos mitos e erros mais comuns, ainda hoje ligados à vida e à obra de Fernando Pessoa. São questões e histórias que não pretendem tirar Pessoa do pódio onde tão justamente está, na literatura mundial. Pretendem, sim, ajudar a evitar que olhemos para o escritor como se ele estivesse numa torre de marfim, “inatingível aos comuns mortais”.

Enquanto investigador, o capítulo 14 foi, sem dúvida, aquele que mais gozo e desafio me deu a construir. Decidi partir da cronologia oficial de Fernando Pessoa (1888 – 1935) e romper a barreira do ano da sua morte. É um trabalho sem presunções, mas fiz questão de estender as pesquisas até este 2015, destacando as iniciativas, factos, edições e efemérides que, mundo fora, nas décadas que se seguiram à morte do escritor, fizeram de Fernando Pessoa uma referência literária mundial.

O capítulo 15 espelha uma das minhas maiores bandeiras, ao longo destes anos de investigação e divulgação pessoanas. Faz-se um levantamento exaustivo dos principais apócrifos, textos que Fernando Pessoa nunca escreveu, mas que ainda assim são publicados e reproduzidos, como se fossem de sua autoria, na comunicação social, na internet em geral e nas redes sociais em particular. Associar estes textos (muitas vezes de qualidade quase indigente) à escrita de Fernando Pessoa é, na minha óptica, quase um crime literário. Para evitá-lo, nada melhor que encarar o problema de frente e denunciar, pedagogicamente, os falsos textos pessoanos. Para que todos saibamos distinguir entre o gato e a lebre.

Finalmente, porque entendo que não haveria Fernando Pessoa como o conhecemos sem os magníficos livros que gerações brilhantes de investigadores foram editando, decidi dar à bibliografia “honras” de capítulo, destacando o essencial da lista das obras de análise pessoana que marcaram mais profundamente os meus estudos. Completei esta lista com os endereços online de portais, revistas e blogues pessoanos que me merecem a mais completa confiança académica.

E é isto, por agora. “Quanto ao mais, cá estamos, sempre”!

Ricardo Belo de Morais

O Farol do Bugio, Fernando Pessoa, o casamento homossexual e as mil e uma ironias da Utopia

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Há quase 10 anos, o historiador José Barreto descobriu, no espólio pessoano, um curiosíssimo documento intitulado “Carta Inorgânica do Estado Independente do Bugio“, datável da segunda metade dos anos 1920. É uma prosa satírica que ainda hoje não está vertida em livro (“salvo erro, naturalmente”, como escreveria Álvaro de Campos…) e terá sido escrita, se não na taberna Abel Pereira da Fonseca da Baixa lisboeta, certamente após uma visita de Pessoa ao estabelecimento, já que este lhe serve de “notário”.

O original do documento pode encontrar-se numa página dactilografada, no Espólio de Fernando Pessoa à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal, com a cota 92F-52.

Neste documento, Fernando Pessoa promove, com gozo desabrido, o ilhéu-farol do estuário do Tejo a estado independente de regime utópico até para artistas, aproveitando para criticar certos aspectos do “continente adjacente”, Lisboa/Portugal. A medida política e moral que mais salta à vista, na carta fundadora do “novo Estado insular”, é a revogação da obrigatoriedade do casamento heterossexual.

Mas as ironias e provocações não se ficam por aqui. Com efeito, Fernando Pessoa nomeia, como cidadãos co-administradores do novo estado insular, alguns dos mais conhecidos meliantes portugueses – ainda que falecidos – por entre escritores de referência mundial como Milton ou Shakespeare…….. Também não falta, como seria de esperar, (mais) uma ‘alfinetada’ a Júlio Dantas.

Ora vejam: 

Carta Inorgânica do Estado Independente do Bugio

§ único. – As leis deste Estado, em contrário das do continente adjacente, serão redigidas em português.

N.º 1. – São adoptadas todas as disposições constantes do contrário de todas as leis adoptadas no citado continente adjacente.

N.º 2. – Designadamente, e para facilitar a imigração de artistas, se exclui, de todas as leis e registos de propriedade referentes a casamento, a exigência de diferença de sexo entre os nubentes.

N.º 3. – Este Estado institui para os nacionais a categoria única de cidadãos do Bugio, a qual poderá ser obtida por qualquer processo insinuante, sendo permitido o da existência.

N.º 4. – Este Estado institui para os estrangeiros três categorias progressivamente ornamentais – meliante, cevado e javardo – e, como não haverá (em virtude de progressivos decretos e emendas) maneira de distinguir as capacidades respectivas, a promoção será feita, como no continente adjacente, por indistinção.

N.º 5. – Como, segundo o direito moderno, os mortos mandam, serão considerados administradores deste Estado, além de outros de igual categoria que venham a ser oportunamente designados, os cidadãos Quinto Horácio Flaco, Diogo Alves, Dante Alighieri, José do Telhado, John Milton, João Brandão, Conselheiro J. W. von Goethe, William Shakespeare e Manuel Peres Vigário.

N.º 6. – Para evitar qualquer descrédito do banco do Estado, não haverá banco do Estado.

N.º 7. – Este Estado poderá deixar de existir por cansaço.

N.º 8. (e § único) – É desde já nomeada única cidadã honorária deste Estado a Exm.ª ausência do Sr. Júlio Dantas.

Bugio, a alumiar.
Dada em Lisboa, pelo grupo exilado revolucionário do Bugio, nas notas do notário Abel Pereira da Fonseca.

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Forte de São Lourenço do Bugio, também conhecido como Forte de São Lourenço da Cabeça Seca, situa-se a meio das águas da foz do rio Tejo, na direcção da Cova do Vapor, na Trafaria; e da vila e concelho de Oeiras. Inclui, na sua estrutura, o Farol do Bugio. A construção, circular, ergue-se sobre um cabeço de areia e foi mandada construir no reinado de Filipe II de Espanha, nos finais do século XVI. As obras iniciaram-se em 1590, mas entre mil e uma vicissitudes, o Bugio só entrou verdadeiramente em funcionamento em 1775, a mando do Marquês de Pombal e depois do terramoto de 1755. No final do século XIX, a construção foi classificada como Praça de Guerra de 2ª Classe. Encontrava-se equipada, nessa altura, com 18 peças de bronze e dois obuses. Severamente danificado pelo tempo e pela erosão das águas, o Bugio sofreu diversas intervenções de consolidação, reparos e conservação a partir da década de 1950 – que se estenderam, por fases, até depois do ano 2000! Actualmente, o Bugio é utilizado como farol de apoio à navegação e pode ser visitado, por grupos organizados, em raras e disputadíssimas ocasiões. Com o apoio das novas tecnologias, a Marinha Portuguesa permite-nos uma visita virtual ao edificado.

FERNANDO PESSOA NO LARGO DO CARMO: O PRIMEIRO 25 DE ABRIL DE “O QUARTO ALUGADO”

Capa O Quarto Alugado

25 de Abril de 1974.

Enquanto assiste à Revolução dos Cravos, e olhando para a janela do quarto onde Fernando Pessoa viveu, no Largo do Carmo nº 18-20, Vicente Guedes, um dos seus heterónimos, decide revelar a sua existência. Para tanto, resolve escrever as suas memórias, porque se apercebe que, com a chegada da tão esperada liberdade, a vastíssima obra de Fernando Pessoa pode, finalmente, ser totalmente publicada, sem censura, e passar a ser conhecida por todos.

Aquele que conhecemos como uma personagem fictícia, criada para escrever a primeira fase do Livro do Desassossego, conta-nos assim a vida de Fernando Pessoa. E revela todas as aventuras e desventuras do seu amigo, desde que este chegou a Lisboa, vindo do que hoje conhecemos como África do Sul, até à sua morte. Além disso, Vicente Guedes relata ainda todo percurso da extensa obra de Pessoa, até ao fim do Estado Novo.

Na pele de biógrafo, Guedes dá-nos uma visão abrangente e emocionada do Pessoa que foi um verdadeiro perseguidor de sonhos – e que é, actualmente, o mais universal dos escritores portugueses.

Ricardo Belo de Morais à janela do quarto ocupado por Fernando Pessoa, no Largo do Carmo
Ricardo Belo de Morais à janela do quarto ocupado por Fernando Pessoa, no Largo do Carmo

O Quarto Alugado” é um trabalho de ficção biográfica. Recusei, desde o início, colocar Fernando Pessoa ele-mesmo no papel de protagonista-narrador, uma vontade que nunca esteve presente, de resto, na sua personalidade reservada. Antes de mais, Fernando Pessoa considerou-se – e escreveu-o taxativamente – um dramaturgo. E chamou, à sua vida, «um drama em gente, em vez de em actos». A lógica e a sensibilidade empurraram-me, assim, para resgatar do esquecimento e relativo anonimato um dos heterónimos pessoanos menos abordados, para contar esta história. Afinal, só mesmo um inexistente-existente seria capaz de nos dar uma perspectiva simultaneamente próxima e distante do que foi a vida adulta de Pessoa. Umas vezes íntimo do Fernando, outras vezes quase que apenas enumerador de uma cronologia oficial, o narrador do meu livro permitiu-me também a ousadia de utilizar, nesta narrativa, vários excertos da obra pessoana, nalguns casos até sem adaptação. O corte e a colagem de textos de Fernando Pessoa à minha própria escrita surge, neste livro, essencialmente como suporte dos diálogos entre narrador e narrado. Além disso, ajuda a manter uma atmosfera “de época”. Naturalmente, quem conhece o meu trabalho dos últimos anos tem, à partida, a garantia absoluta de que as minhas ousadias, nesta obra, respeitam intransigentemente o legado de Pessoa. Os dados biobibliográficos apresentados nesta obra são factuais, consensuais, comparados e elencados por ordem cronológica. A sua exposição, apesar de lúdica, nunca perde de vista as fontes documentais, algumas delas inéditas. “O Quarto Alugado” atreve-se a existir porque entendo que até hoje, por entre a brilhante multiplicidade de milhares de livros e estudos académicos, levados à estampa por gerações sucessivas de investigadores e investigadoras notáveis, continuava a faltar, por escrito, um certo Fernando Pessoa, de certo modo em carne e osso, que pudesse apelar, enquanto personagem do seu próprio drama, ao público em geral. Quando escrevi as derradeiras linhas desta biografia romanceada, senti orgulho na homenagem que pude fazer ao Fernando Pessoa que amo há tantos anos. Alguns meses depois do lançamento, com os inúmeros testemunhos de alunos, professores, pais, académicos, investigadores pessoanos e público em geral, sei que isto mesmo chegou e continua a chegar ao universo dos meus leitores. Fernando Pessoa merece!

Ricardo Belo de Morais

Título: O Quarto Alugado – a vida de Fernando Pessoa, revisitada por um velho amigo
Edição: 2014
Páginas: 192 (inclui caderno de fotos)
Editor: Verso de Kapa
PVP: 16,50 € 
ISBN: 9789898406934
(disponível em todas as livrarias portuguesas)

O Livro do Desassossego chegou ao Árctico!!

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O norueguês Christian Kjelstrup, bem conhecido de todos os portugueses que amam Fernando Pessoa, chegou hoje mesmo à ilha de Svalbard, no Ártico, com o Livro do Desassossego na bagagem. O destino final é a pequena cidade de Longyearbyen, 2000 km a norte da capital norueguesa, Oslo.

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Longyearbyen, com uma população de aproximadamente dois mil habitantes, vai ser a próxima sede da “Livraria do Desassossego”, uma loja efémera, programada para funcionar durante sete dias e vender apenas um único livro: a obra-prima de Fernando Pessoa em prosa. Além dos dois mil habitantes de Longyearbyen, não nos espantará se o Christian Kjelstrup tentar mostrar o Livro do Desassossego a um dos milhares de ursos polares que fazem companhia à população da cidade….

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Longyearbyen não tem – nem teve, até hoje – uma livraria. E esta, a do Desassossego, passa também a ser a livraria mais a Norte alguma vez instalada no planeta Terra. 😉

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A aventura da “Livraria do Desassossego” começou pela mão do editor norueguês Christian Kjelstrup em Março deste ano. Instalada em Oslo, a livraria vendeu milhares de livros de Pessoa. Christian Kjelstrup, que considera o Livro do Desassossego a melhor obra literária do mundo, percorreu o seu país natal com a obra, apresentou-a à família real daquele país e contribuiu para fazer de Fernando Pessoa um fenómeno literário e mediático junto do público norueguês – não faltando uma sessão de leituras num estádio de futebol (!) local, quando a loja norueguesa se tornou pequena para tanto público.
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Em Julho, foi a vez da “Livraria do Desassossego” chegar a Lisboa, ao Chiado, instalando-se na loja de A Vida Portuguesa, à Rua Anchieta, entre os dias 2 e 6 daquele mês, numa cedência de Catarina Portas e com a colaboração da editora Tinta-da-China.

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Com o apoio da Embaixada de Portugal em Oslo e da EGEAC / Casa Fernando Pessoa em Lisboa, tive a honra de conceber e produzir uma noite de homenagem à iniciativa e ao seu autor. Abrindo portas excepcionalmente a um Domingo, a Casa Fernando Pessoa encheu como um ovo, para uma festa literária e musical que contou com as presenças de Christian Kjelstrup; dos pessoanos Eduardo Lourenço, Richard Zenith, Jerónimo Pizarro, Patrício Ferrari e Antonio Cardiello; dos actores Maria do Céu Guerra e Diogo Infante lendo trechos do Livro do Desassossego; e dos músicos Rogério Godinho, Mafalda Arnauth e João Afonso, interpretando canções sobre poemas de Pessoa.

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Caran d’Ache Homenageia Fernando Pessoa

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Por esta altura, são já vários os pontos do país em que pode encontrar-se à venda a primeira colecção na escrita de luxo da Caran d’Ache – Maison de Haute Ecriture inspirada num escritor português. A escolha foi óbvia, natural e recaiu sobre a imagem icónica de Fernando Pessoa.

A linha é composta por 888 canetas de tinta permanente e 888 canetas roller Léman. O número oito é a “estrela” desta edição limitada, por razões bem visíveis e que se prendem com a vida e obra do escritor. Fernando Pessoa nasceu em 1888 e o seu nome próprio tem oito letras. As mesmas oito letras que teve, propositadamente, o título do seu livro Mensagem. O oito esteve também no dia de Março de 1914 que Pessoa escolheu para a “criação” dos heterónimos Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.cropped-CDA-FP-pormenor-tampa1cropped-Tampa_lifestyle1

Nas duas canetas desta edição limitada, o preto brilhante foi conseguido através da aplicação manual de 12 camadas de laca da China e revestimento em ródio, para uma escrita suave. O aparo prateado exibe a gravação do busto do poeta, tal como o topo da tampa. O pormenor final e singular é dado também na tampa, com a gravação da assinatura de Fernando Pessoa.

Produzida na única fábrica da Caran d’Ache, em Genebra, a coleccção Fernando Pessoa é uma iniciativa conjunta com a empresa portuguesa Anjersil, representante nacional da marca suíça desde 2007.

A caneta permanente custa 898 euros e a caneta roller custa 648 euros.

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A importância deste projecto da Caran d’Ache e da Anjersil foi atestada pelo local escolhido para o lançamento – a Casa Fernando Pessoa, em Lisboa – e pela presença do CEO da Maison de Haute Ecriture, Jean-Francois de Saussure. Miguel Frasquilho, Presidente da AEICEP, apresentou a sessão, salientando o facto de todas as ideias em torno deste projecto serem portuguesas.

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“Obra Completa de Álvaro de Campos” – Uma Análise

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Se considerarmos os “irmãos mais próximos” da família heteronímica de Fernando Pessoa  – Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos – é inegável que foi este último cuja obra mais ganhou destaque público e preferências populares, ao longo das décadas. Pelo menos na Europa, já que a América do Sul parece privilegiar, ainda que por curta margem, o Mestre Caeiro.

Em Portugal, Álvaro de Campos é o único heterónimo a ter direito a uma “Casa” e uma Biblioteca, em Tavira. E “Tabacaria”, o poema mais emblemático do ‘Engenheiro’, conquistou aliás, no ano passado, a distinção de ser o poema do universo pessoano mais citado nas diferentes redes sociais, conforme estudo do Projecto Sapo Labs com a Universidade de Lisboa.

Neste cenário, Obra Completa de Álvaro de Campos (Tinta-da-China), agora lançado, vem oferecer a possibilidade de aceder à obra integral de Campos, reunida pela primeira vez e numa só edição crítica, articulando o «Livro de Versos» (que Pessoa projectou intitular «Intervallos» ou «Acessorios», mais tardiamente) com o «Livro de Prosa», que designaria de «Episodios». Álvaro de Campos, uma das «ficções de interlúdio» criadas por Pessoa, é o autor desses intervalos e desses episódios, por vezes con­siderados como acidentes do destino.

O livro abre com a obra poética do heterónimo, numa secção que abarca os textos das suas três fases principais:

(1) o poeta pré‑modernista de «Opiá­rio», que Pessoa designa de «Álvaro em botão» e a quem atribui uma série indefinida de «Poemas antes de Acordar»: na prática, «antes de ter conhecido Caeiro e ter cahido sob a sua influencia»;

(2) o poeta modernista de um livro de versos, Arco de Triumpho, que seria o livro das suas grandes odes, – nomea­damente das mais fragmentárias: a «Ode Marcial», a «Saudação a Walt Whitman» e «A Passagem das Horas» –  aqui reorganizadas por Filipa Freitas, em diálogo com os editores;

(3) o poeta tardo‑modernista – ou, por outras palavras, o poeta de um segundo modernismo já mais próximo da pós‑modernidade, autor de um conjunto de poemas soltos.

O recém-lançado Obra Completa de Álvaro de Campos prossegue com uma secção de textos sem cota, isto é, não inventariados pela Bi­blioteca Nacional de Portugal (BNP), porque não se conserva deles um original, apenas o testemunho impresso na primeira edição da Ática: Poesias de Álvaro de Campos (1944).

Integra o corpus poético de Campos um capítulo de anexos que contém:

  1. a) textos fragmentários inacabados ou esboços, atribuídos explicitamente a Álvaro de Campos.
  2. b) um fragmento que se poderia encaixar em «Passagem das horas» ou em «Saudação a Walt Whitman»;
  3. c) textos atribuídos a Álvaro de Campos posteriormente, isto é, não no momento inicial da escrita, revelando uma transição.
  4. d) textos que não são necessariamente atribuíveis a Álvaro de Campos – e que constituem, assim, um espaço textual indefinido.
  5. e) listas e esquemas de organização de projectos como Arco de Triumpho.

A prosa de Álvaro de Campos atende ao modelo de organização e sequência de textos já proposto em 2012 (cf. Prosa de Álvaro de Campos), embora o livro aqui em análise inaugure esta parte com a Prosa publicada em vida.

Neste novel Obra Completa de Álvaro de Campos, o trabalho dos consagrados investigadores pessoanos Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello tem o intuito claro de preservar o retrato de Álvaro de Campos enquanto síntese de uma evolução lírica e fic­cional. E a vantagem, no que toca aos leitores, de o fazer num só volume, com p.v.p. recomendado de 25 euros.

A “Colecção Pessoa” da editora Tinta-da-China chega, assim, ao seu terceiro degrau, depois dos volumes «Livro do Desassossego» e «Eu Sou Uma Antologia». O futuro apresenta-se, pois, cheio de bons auspícios.

Ricardo Belo de Morais

O Meu Pessoa agradece aos autores do livro a cedência de um exemplar para análise.

A FUGA DAS FICÇÕES – Fernando Pessoa visto pelo tradutor romeno Dinu Flămând

No passado dia 14 de Maio de 2014, o Instituto Cultural Romeno e a Casa Fernando Pessoa promoveram em conjunto o evento “As Máscaras do Poeta”, com o intuito de homenagear o grande escritor português Fernando Pessoa. Foi então inaugurada uma exposição intitulada “Desenhando Fernando Pessoa” (patente até 30 de junho), composta por retratos imaginários do escritor português, na visão de importantes artístas plásticos da Roménia. Inaugurou também uma exposição de livros da autoria de Fernando Pessoa, com vários títulos em romeno, entre os quais a Série de Autor recentemente publicada pela Editora Humanitas, de que abaixo se reproduz a capa de «Ora Absurdă», a mais recente. O evento culminou com um debate sobre a tradução da obra de Fernando Pessoa na Roménia, na presença de três convidados: os tradutores romenos do escritor português, Dinu Flămând e Micaela Ghiţescu, e Denisa Comănescu, diretora da Humanitas Fiction, a editora romena de Fernando Pessoa. O Meu Pessoa reproduz hoje, em primeira mão, o texto da alocução de Dinu Flămând.

 Capa Ora Absurdá

A FUGA DAS FICÇÕES

Não pretendo dizer-vos quem é Fernando Pessoa. Já lá vão mais de três décadas desde nos andamos a frequentar um ao outro: ele escreve e eu traduzo o que ele escreve. Tenho raramente a ocasião de falar com ele ou com qualquer outro Português. Gosto de perceber na minha língua aquilo que ele diz e tento, em seguida, explicá-lo a outros Romenos. Às vezes, até é fácil: devem saber que nós temos também uma espécie de saudade. Em certos contextos, essa vossa palavra é gémea da nossa palavra chamada dor. Mas as duas mantêm o mesmo mistério.

Vocês Portugueses têm igualmente a dor, mas no sentido mais restritivo de durere. Como se vê, a cepa da videira latina pode dar castas de uvas variadas. Mas a saudade e O dor (em romeno, dor é masculino no singular) fazem com que naveguemos, nós através dos Cárpatos e vocês desde Sagres, com as vossas caravelas, pelos mares inesgotáveis desta melancolia secreta e reconfortante. Não obstante, temos em comum, Romenos e Portugueses, tantos outros maravilhosos vasos comunicantes que possibilitam a passagem dos textos de Pessoa através das eclusas da tradução. Outras vezes fica mais complicado.

Não temos, por exemplo, uma palavra derivada de fingo, fingere, para se chegar ao incontornável fingidor, uma plataforma continental no Arquipélago pessoano. Mas, ao entrar por uma outra porta da latinidade, podemos afirmar que o poeta é um imaginador, mesmo se perdermos certos matizes do fingidor. Faço o meu melhor: o tradutor é apenas a cinderela da literatura.

Mas o tradutor é, todavia, o homem mais feliz do mundo. Considerei-me cheio de sorte na altura em que descobri Pessoa, pela primeira vez. Era o mais subversivo autor ocidental que tinha conseguido transgressar do outro lado da Cortina de Ferro. Costumava ficar a ler, numas águas-furtadas, “Opiário”, “lmpressões do Crepúsculo” e outros poemas do período da sua decadência furiosa, e sentia-me imunizado para com o realismo socialista que nos estava a envenenar a atmosfera, em Bucareste.

Sentia-me livro, ao lado dele. Todas as suas fantasias gozavam, indirectamente, com a literatura e com a nossa propaganda proletária. Todos os seus poemas faziam-me sentir sensível e inteligente, ajudavam-me a viajar para além das fronteiras e dos lugares comuns, como em “Ode Marítima”. Ou confraternizar com o dono da “Tabacaria” que, como sabem, com certeza, era o dono do Universo. Os censores comunistas devem ter sentido que Pessoa era um grande subversivo. Como prova, tinham-lhe censurado o título “A Hora Absurda”. Enquanto admirador do Pessoa, eu imaginava o pasmo de alguns censores, capazes de convocar a inteira família dos heterónimos numa reunião do partido, para justificarem o seu evasionismo, misticismo, inconformismo ou as suas ideias anti-revolucionárias. Ele (que andava permanentemente a revolucionar todas as ideias) pretendia até “indisciplinar” os Portugueses; e incentivava-me a mim para a mais subversiva rebelião estética…

A multiplicação de Pessoa em heterónimos tinha-se tornado no meu passaporte e na minha maneira de evadir-me! Percebia fisicamente a liberdade absoluta em que ele se tinha movido. Viajava junto com ele através de todas as épocas, com todas as caras e identidades que me oferecia.

Para mim, essa sua ubiquidade era também uma vitória do seu espírito subversivo e independente, que não se deixava apanhar, enquadrar nas normas e nem sequer suspeitar de rebelião ou fúrias iconoclastícas, sob a sua aparência de contabilista inofensivo. Pessoa tinha aperfeiçoado um plano fáustico, pelo qual pulverizava os limites somáticos do seu corpo. Ele multiplica o Soma através do Sema, regressando ao Soma, restabelecendo o ciclo essencial do espírito antigo grego, a relação entre soma = o corpo morto do herói e sema = a inscrição na sua lápide tumular; isto é, o texto destinado a permanecer, enquanto testemunho, sobre a viagem acabada daquele corpo.

Eu encarava os textos pessoanos enquanto lápides tumulares de certas pessoas que somatizavam n’ELE a literatura, testemunhos que iam resumir e “significar’ tudo aquilo que Fernando Pessoa tinha sido, por muito tempo, nas suas vidas. Desse modo, ele estava a regressar à origem da fotossíntese entre a vida e a literatura. Trazia, assim, a prova de que as duas se determinam simultaneamente, sem precedência de uma ou de outra. Tal coisa só antes tinha acontecido nas teogonias sobre a Génese do mundo, que contornam graciosamente a questão das origens, deixando no mistério a explicação dos inícios. A multiplicação heteronímica de Pessoa exalta esse culto heróico, no acto solene e totalmente corajoso que é o trabalho da imaginação vivida e da vida imaginada. Em comparação com tantos congéneres literários que se haviam tentado desdobrar através da escrita, Fernando Pessoa tinha-se apercebido de que fingir deve ter, a cada vez, um outro corpo – portanto, uma existência e duração somática. Apenas as páginas mais misteriosas de Pessoa, lá onde nem ele próprio tem a certeza daquilo que existe, existem na realidade. O nosso escritor evita dar corporalidade a algumas “pessoas” indistintas que também o habitam. São os fantasmas-Pessoa, aqueles que andam a passear pela ‘Floresta do Alheamento”, são as personagens sonâmbulas de algumas escritas esotéricas, de alguns poemas dramáticos ou até de alguns ensaios.

Nessa categoria de interregno entra, sobretudo, “O Marinheiro”. Permitam-me avançar uma hipótese (sem saber se não foi já feita, pois os comentários sobre pessoa não podem ser esgotados, ao longo de uma vida inteira). Penso que ao frequentar assiduamente Horácio, Pessoa deu com a mais misteriosa Ode daquele grego, a Ode nº XXVlll, Livro l, sobre o marinheiro Arquitas. Aquele texto enganador tem, pelo menos, três vozes autorais. Os especialistas da literatura antiga ainda não sabem quem é que lamenta ali a fragilidade da vida. Numa dada altura, podemos entender que o espírito de um marinheiro afogado implora que se polvilhe, por cima dos seus ossos espalhados pelas ondas, um punhado de terra, para que o seu corpo dissoluto possa pôr, com dignidade, um termo à sua existência. O pedido é dirigido a um passante, tal como todas as exortações para recordação e recolhimento, gravadas nas lápides tumulares ao longo das estradas. O passante é, imagine-se, um marinheiro! Só que ele corre na praia, está vivo. Podíamos entender que se trata de um avatar do marinheiro afogado, tal como Arquitas foi discípulo e – ao mesmo tempo – avatar de Pitágoras. E tal como, se calhar, Pessoa se sentia avatar dos seus heterónimos. Temos, nessa ode deslumbrante, a lamentação de uma vida inacabada, por o corpo não ter tido o devido enterro. Pessoa não podia ter deixado escapar essa elegia de um marinheiro morto que não morreu, de uma vida que não se concluiu pelo sema, com a inscrição na lápide – o equivalente de qualquer texto literário. Penso que este devia ser também o sentido da vigília, daquela ausência, no drama estático de Pessoa. Três veladoras evocam ali o fantasma da ausência, elas próprias atingidas pela inconsistência. Tudo aquilo que parece concreto e real, no quarto que está à espera da madrugada, flutua nessa inconsistência.

Pessoa dirige-se para nós vindo da profundidade insondável das moiras (a concepção grega do Destino) e do mundo homérico, trazendo consigo a angústia indefinida da viagem que é a vida. A situação estática tensa parece uma radiografia iminente de um herói que não foi nem velado nem devidamente enterrado. Ao cair, ele havia caído na batalha homérica da vida.

Pessoa costumava assimilar, com grande facilidade, doutrinas literárias e filosóficas, estilos, culturas inteiras e informações cuja diversidade é acessível a muito poucas pessoas, mesmo as mais sedentas de cultura. Mas ele não era um enciclopedista bulímico, assimilando tudo e mais alguma coisa, nem sequer um super epígono alexandrino, sem personalidade. Era alguém orgulhoso de ser capaz de fazer malabarismos com o estilo de Horácio, ou de Shakespeare, ou com as cheias provocadas pelos poemas de Whitman. Como já disse, Pessoa somatiza toda a experiência estética. Se tem algo para se arrepender, não se deixa incomodado por banalidades sobre a sinceridade de que sofria esse fingir, pois lamenta, se tanto, o facto de os seus sentidos brutos não serem tão subtis quanto a inteligência ou a imaginação que somatizam os sentidos.

Não me lembro de outra coisa de que comparar Pessoa com Picasso, o louco pela arte, quartista de génio, que não desistiu até ter pintado, com a própria mão (transformando-os, devorando-os…), os seus próprios quadros de… El Greco, Goya, Velasquez, Mantegna, Cézanne e outros. Pessoa e Picasso fagocitam os seus modelos adorados, tal como aquele sombrio Saturno de Goya. Mas ambos se inscrevem num processo de inevitáveis metamorfoses, ambos se deixam absortos por uma fuga das ficções, de uma geração para outra, transmitindo-as mais adiante. Trata-se da “eterna grinalda”, da perpétua fuga musical, a metamorfose interior-exterior do espírito sobre qual já fala o famoso livro de Douglas R. Hofstadter, «Gödel, Escher, Bach: Les Brins d’une Guirlande Eternelle» (Dunod, Paris, 2000).

Pessoa encontra a mais deslumbrante imagem – um novelo embrulhado para o lado de dentro – para nos fazer entender esse rebentar de uma interioridade que já é exterioridade e contacto, para se tornar novamente interioridade que se envolve no tempo. É por isso que Pessoa tinha a convicção de que o espírito criador é “um pouco maior de que o universo inteiro”.

Com certeza, um tal artista chega muitas vezes a contradizer-se a si próprio. Mas Pessoa cultivou metodicamente todas as contradições, todos os paradoxos e as incompatibilidades. As relações dentro da família heteronímica – esta fuga musical das identidades – tinham sido uma proliferação procurada de incompatibilidades, inclusive a nível das ideias. Também incompatíveis foram, entre si, as profissões da fé, enganadoras e contraditórias, com as quais a nossa personagem se apresentava na vida pública do seu tempo.

Não podemos pensar que Pessoa foi monárquico ou republicano, ou um reacionário a fazer o elogio da ditadura, até da ditadura militar, continuando em simultâneo a tomar a defesa dos homossexuais, bem como exultando o espírito imperial das conquistas portuguesas, ao pensar num império absoluto do espírito; dando ao mesmo tempo a sensação de ser um conservador retrógrada e rígido, ou um amador não sério de farsas, de romances policiais, de filmes e de palavras cruzadas. Se deixarmos de lado a timidez lendária do monopersonagem, surge das sombras o homem cheio de humor e inventividade, o provocador subversivo, bem como o místico secreto, um indivíduo complexo e nada incomodado pela diversidade da vida prática, embora se tenha considerado obrigado e submisso apenas a certos donos “secretos”, só por ele conhecidos.

Ao admirar o meu conterrâneo Stephan Lupasco, o autor de uma deliciosa teoria sobre a lógica polivelada que integra também o terço excluído, bem percebo que Pessoa podia ser tudo isso, até com uma certa dose de “sinceridade”, sem portanto ser nada de tudo isso.

Tenho a certeza que, para Pessoa, só a literatura tinha uma certa importância. A sua imensa tristeza tinha-o enclausurado no sarcófago daquela. Tentou uma única vez amar uma mulher, mas foi para que amasse com um amor similar a literatura, aproveitando-se de um ensejo em que pensava que podia entrar na pele de Hamlet. Penso ainda que Pessoa estava a antecipar a nossa náusea de todas as ideologias, bem como a nossa desconfiança de todos os ideais manipuladores que nos chantageiam actualmente a sensibilidade.

Ainda tenho um pensamento de admiração para com os retiros secretos de Pessoa no universo infinito da infância, lá onde havia encontrado aquele menino Jesus, parando em casa do Alberto Caeiro, a quem o amigo Redentor podia ter-lhe ditado um novo Evangelho, se quisesse salvar, dentro de nós, aquilo que ainda pode ser salvo. Mas o mestre Caeiro faleceu cedo, como acontece com todas as esperanças nossas: aquele Evangelho, o amigo Jesus ainda não o ditou a ninguém.

Paris, Abril de 2014

Dinu Flămând (24 de Junho 1947, Roménia) é um escritor e jornalista romeno contemporâneo, o mais importante tradutor da obra de Fernando Pessoa para romeno. Actualmente vive em França onde trabalha como jornalista para a Secção Romena da Radio France Internationale.

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Nascido na aldeia de Susenii Bârgaului, no Norte da Transilvânia, a 24 de Junho de 1947, Dinu Flămând conduziu uma actividade intensa de divulgação e de crítica literária desde a sua juventude, uma actividade sempre marcada por uma abertura a novos valores e novas correntes de pensamento. Começou a escrever poesia e ensaio, tentando sempre contornar a vigilância da censura que se tornava cada vez mais sufocante, obrigando a cortes sistemáticos nos seus escritos. Desencantado com as mutilações constantes da sua obra, Dinu Flămând buscou algum refúgio nas traduções de grandes escritores, entre as quais as de alguns poetas de língua portuguesa como Fernando Pessoa, Herberto Hélder, Miguel Torga ou Sophia de Mello Breyner Andresen. 
Em Fevereiro de 1989, aproveitando um convite para participar em Lisboa num congresso de escritores lusófonos, Dinu Flămând decide não regressar à Roménia e, em Março, obtém asilo político em França, país onde ainda hoje trabalha como jornalista da Radio France Internationale, colaborando também regularmente em revistas e jornais romenos e estrangeiros.