No passado dia 14 de Maio de 2014, o Instituto Cultural Romeno e a Casa Fernando Pessoa promoveram em conjunto o evento “As Máscaras do Poeta”, com o intuito de homenagear o grande escritor português Fernando Pessoa. Foi então inaugurada uma exposição intitulada “Desenhando Fernando Pessoa” (patente até 30 de junho), composta por retratos imaginários do escritor português, na visão de importantes artístas plásticos da Roménia. Inaugurou também uma exposição de livros da autoria de Fernando Pessoa, com vários títulos em romeno, entre os quais a Série de Autor recentemente publicada pela Editora Humanitas, de que abaixo se reproduz a capa de «Ora Absurdă», a mais recente. O evento culminou com um debate sobre a tradução da obra de Fernando Pessoa na Roménia, na presença de três convidados: os tradutores romenos do escritor português, Dinu Flămând e Micaela Ghiţescu, e Denisa Comănescu, diretora da Humanitas Fiction, a editora romena de Fernando Pessoa. O Meu Pessoa reproduz hoje, em primeira mão, o texto da alocução de Dinu Flămând.
A FUGA DAS FICÇÕES
Não pretendo dizer-vos quem é Fernando Pessoa. Já lá vão mais de três décadas desde nos andamos a frequentar um ao outro: ele escreve e eu traduzo o que ele escreve. Tenho raramente a ocasião de falar com ele ou com qualquer outro Português. Gosto de perceber na minha língua aquilo que ele diz e tento, em seguida, explicá-lo a outros Romenos. Às vezes, até é fácil: devem saber que nós temos também uma espécie de saudade. Em certos contextos, essa vossa palavra é gémea da nossa palavra chamada dor. Mas as duas mantêm o mesmo mistério.
Vocês Portugueses têm igualmente a dor, mas no sentido mais restritivo de durere. Como se vê, a cepa da videira latina pode dar castas de uvas variadas. Mas a saudade e O dor (em romeno, dor é masculino no singular) fazem com que naveguemos, nós através dos Cárpatos e vocês desde Sagres, com as vossas caravelas, pelos mares inesgotáveis desta melancolia secreta e reconfortante. Não obstante, temos em comum, Romenos e Portugueses, tantos outros maravilhosos vasos comunicantes que possibilitam a passagem dos textos de Pessoa através das eclusas da tradução. Outras vezes fica mais complicado.
Não temos, por exemplo, uma palavra derivada de fingo, fingere, para se chegar ao incontornável fingidor, uma plataforma continental no Arquipélago pessoano. Mas, ao entrar por uma outra porta da latinidade, podemos afirmar que o poeta é um imaginador, mesmo se perdermos certos matizes do fingidor. Faço o meu melhor: o tradutor é apenas a cinderela da literatura.
Mas o tradutor é, todavia, o homem mais feliz do mundo. Considerei-me cheio de sorte na altura em que descobri Pessoa, pela primeira vez. Era o mais subversivo autor ocidental que tinha conseguido transgressar do outro lado da Cortina de Ferro. Costumava ficar a ler, numas águas-furtadas, “Opiário”, “lmpressões do Crepúsculo” e outros poemas do período da sua decadência furiosa, e sentia-me imunizado para com o realismo socialista que nos estava a envenenar a atmosfera, em Bucareste.
Sentia-me livro, ao lado dele. Todas as suas fantasias gozavam, indirectamente, com a literatura e com a nossa propaganda proletária. Todos os seus poemas faziam-me sentir sensível e inteligente, ajudavam-me a viajar para além das fronteiras e dos lugares comuns, como em “Ode Marítima”. Ou confraternizar com o dono da “Tabacaria” que, como sabem, com certeza, era o dono do Universo. Os censores comunistas devem ter sentido que Pessoa era um grande subversivo. Como prova, tinham-lhe censurado o título “A Hora Absurda”. Enquanto admirador do Pessoa, eu imaginava o pasmo de alguns censores, capazes de convocar a inteira família dos heterónimos numa reunião do partido, para justificarem o seu evasionismo, misticismo, inconformismo ou as suas ideias anti-revolucionárias. Ele (que andava permanentemente a revolucionar todas as ideias) pretendia até “indisciplinar” os Portugueses; e incentivava-me a mim para a mais subversiva rebelião estética…
A multiplicação de Pessoa em heterónimos tinha-se tornado no meu passaporte e na minha maneira de evadir-me! Percebia fisicamente a liberdade absoluta em que ele se tinha movido. Viajava junto com ele através de todas as épocas, com todas as caras e identidades que me oferecia.
Para mim, essa sua ubiquidade era também uma vitória do seu espírito subversivo e independente, que não se deixava apanhar, enquadrar nas normas e nem sequer suspeitar de rebelião ou fúrias iconoclastícas, sob a sua aparência de contabilista inofensivo. Pessoa tinha aperfeiçoado um plano fáustico, pelo qual pulverizava os limites somáticos do seu corpo. Ele multiplica o Soma através do Sema, regressando ao Soma, restabelecendo o ciclo essencial do espírito antigo grego, a relação entre soma = o corpo morto do herói e sema = a inscrição na sua lápide tumular; isto é, o texto destinado a permanecer, enquanto testemunho, sobre a viagem acabada daquele corpo.
Eu encarava os textos pessoanos enquanto lápides tumulares de certas pessoas que somatizavam n’ELE a literatura, testemunhos que iam resumir e “significar’ tudo aquilo que Fernando Pessoa tinha sido, por muito tempo, nas suas vidas. Desse modo, ele estava a regressar à origem da fotossíntese entre a vida e a literatura. Trazia, assim, a prova de que as duas se determinam simultaneamente, sem precedência de uma ou de outra. Tal coisa só antes tinha acontecido nas teogonias sobre a Génese do mundo, que contornam graciosamente a questão das origens, deixando no mistério a explicação dos inícios. A multiplicação heteronímica de Pessoa exalta esse culto heróico, no acto solene e totalmente corajoso que é o trabalho da imaginação vivida e da vida imaginada. Em comparação com tantos congéneres literários que se haviam tentado desdobrar através da escrita, Fernando Pessoa tinha-se apercebido de que fingir deve ter, a cada vez, um outro corpo – portanto, uma existência e duração somática. Apenas as páginas mais misteriosas de Pessoa, lá onde nem ele próprio tem a certeza daquilo que existe, existem na realidade. O nosso escritor evita dar corporalidade a algumas “pessoas” indistintas que também o habitam. São os fantasmas-Pessoa, aqueles que andam a passear pela ‘Floresta do Alheamento”, são as personagens sonâmbulas de algumas escritas esotéricas, de alguns poemas dramáticos ou até de alguns ensaios.
Nessa categoria de interregno entra, sobretudo, “O Marinheiro”. Permitam-me avançar uma hipótese (sem saber se não foi já feita, pois os comentários sobre pessoa não podem ser esgotados, ao longo de uma vida inteira). Penso que ao frequentar assiduamente Horácio, Pessoa deu com a mais misteriosa Ode daquele grego, a Ode nº XXVlll, Livro l, sobre o marinheiro Arquitas. Aquele texto enganador tem, pelo menos, três vozes autorais. Os especialistas da literatura antiga ainda não sabem quem é que lamenta ali a fragilidade da vida. Numa dada altura, podemos entender que o espírito de um marinheiro afogado implora que se polvilhe, por cima dos seus ossos espalhados pelas ondas, um punhado de terra, para que o seu corpo dissoluto possa pôr, com dignidade, um termo à sua existência. O pedido é dirigido a um passante, tal como todas as exortações para recordação e recolhimento, gravadas nas lápides tumulares ao longo das estradas. O passante é, imagine-se, um marinheiro! Só que ele corre na praia, está vivo. Podíamos entender que se trata de um avatar do marinheiro afogado, tal como Arquitas foi discípulo e – ao mesmo tempo – avatar de Pitágoras. E tal como, se calhar, Pessoa se sentia avatar dos seus heterónimos. Temos, nessa ode deslumbrante, a lamentação de uma vida inacabada, por o corpo não ter tido o devido enterro. Pessoa não podia ter deixado escapar essa elegia de um marinheiro morto que não morreu, de uma vida que não se concluiu pelo sema, com a inscrição na lápide – o equivalente de qualquer texto literário. Penso que este devia ser também o sentido da vigília, daquela ausência, no drama estático de Pessoa. Três veladoras evocam ali o fantasma da ausência, elas próprias atingidas pela inconsistência. Tudo aquilo que parece concreto e real, no quarto que está à espera da madrugada, flutua nessa inconsistência.
Pessoa dirige-se para nós vindo da profundidade insondável das moiras (a concepção grega do Destino) e do mundo homérico, trazendo consigo a angústia indefinida da viagem que é a vida. A situação estática tensa parece uma radiografia iminente de um herói que não foi nem velado nem devidamente enterrado. Ao cair, ele havia caído na batalha homérica da vida.
Pessoa costumava assimilar, com grande facilidade, doutrinas literárias e filosóficas, estilos, culturas inteiras e informações cuja diversidade é acessível a muito poucas pessoas, mesmo as mais sedentas de cultura. Mas ele não era um enciclopedista bulímico, assimilando tudo e mais alguma coisa, nem sequer um super epígono alexandrino, sem personalidade. Era alguém orgulhoso de ser capaz de fazer malabarismos com o estilo de Horácio, ou de Shakespeare, ou com as cheias provocadas pelos poemas de Whitman. Como já disse, Pessoa somatiza toda a experiência estética. Se tem algo para se arrepender, não se deixa incomodado por banalidades sobre a sinceridade de que sofria esse fingir, pois lamenta, se tanto, o facto de os seus sentidos brutos não serem tão subtis quanto a inteligência ou a imaginação que somatizam os sentidos.
Não me lembro de outra coisa de que comparar Pessoa com Picasso, o louco pela arte, quartista de génio, que não desistiu até ter pintado, com a própria mão (transformando-os, devorando-os…), os seus próprios quadros de… El Greco, Goya, Velasquez, Mantegna, Cézanne e outros. Pessoa e Picasso fagocitam os seus modelos adorados, tal como aquele sombrio Saturno de Goya. Mas ambos se inscrevem num processo de inevitáveis metamorfoses, ambos se deixam absortos por uma fuga das ficções, de uma geração para outra, transmitindo-as mais adiante. Trata-se da “eterna grinalda”, da perpétua fuga musical, a metamorfose interior-exterior do espírito sobre qual já fala o famoso livro de Douglas R. Hofstadter, «Gödel, Escher, Bach: Les Brins d’une Guirlande Eternelle» (Dunod, Paris, 2000).
Pessoa encontra a mais deslumbrante imagem – um novelo embrulhado para o lado de dentro – para nos fazer entender esse rebentar de uma interioridade que já é exterioridade e contacto, para se tornar novamente interioridade que se envolve no tempo. É por isso que Pessoa tinha a convicção de que o espírito criador é “um pouco maior de que o universo inteiro”.
Com certeza, um tal artista chega muitas vezes a contradizer-se a si próprio. Mas Pessoa cultivou metodicamente todas as contradições, todos os paradoxos e as incompatibilidades. As relações dentro da família heteronímica – esta fuga musical das identidades – tinham sido uma proliferação procurada de incompatibilidades, inclusive a nível das ideias. Também incompatíveis foram, entre si, as profissões da fé, enganadoras e contraditórias, com as quais a nossa personagem se apresentava na vida pública do seu tempo.
Não podemos pensar que Pessoa foi monárquico ou republicano, ou um reacionário a fazer o elogio da ditadura, até da ditadura militar, continuando em simultâneo a tomar a defesa dos homossexuais, bem como exultando o espírito imperial das conquistas portuguesas, ao pensar num império absoluto do espírito; dando ao mesmo tempo a sensação de ser um conservador retrógrada e rígido, ou um amador não sério de farsas, de romances policiais, de filmes e de palavras cruzadas. Se deixarmos de lado a timidez lendária do monopersonagem, surge das sombras o homem cheio de humor e inventividade, o provocador subversivo, bem como o místico secreto, um indivíduo complexo e nada incomodado pela diversidade da vida prática, embora se tenha considerado obrigado e submisso apenas a certos donos “secretos”, só por ele conhecidos.
Ao admirar o meu conterrâneo Stephan Lupasco, o autor de uma deliciosa teoria sobre a lógica polivelada que integra também o terço excluído, bem percebo que Pessoa podia ser tudo isso, até com uma certa dose de “sinceridade”, sem portanto ser nada de tudo isso.
Tenho a certeza que, para Pessoa, só a literatura tinha uma certa importância. A sua imensa tristeza tinha-o enclausurado no sarcófago daquela. Tentou uma única vez amar uma mulher, mas foi para que amasse com um amor similar a literatura, aproveitando-se de um ensejo em que pensava que podia entrar na pele de Hamlet. Penso ainda que Pessoa estava a antecipar a nossa náusea de todas as ideologias, bem como a nossa desconfiança de todos os ideais manipuladores que nos chantageiam actualmente a sensibilidade.
Ainda tenho um pensamento de admiração para com os retiros secretos de Pessoa no universo infinito da infância, lá onde havia encontrado aquele menino Jesus, parando em casa do Alberto Caeiro, a quem o amigo Redentor podia ter-lhe ditado um novo Evangelho, se quisesse salvar, dentro de nós, aquilo que ainda pode ser salvo. Mas o mestre Caeiro faleceu cedo, como acontece com todas as esperanças nossas: aquele Evangelho, o amigo Jesus ainda não o ditou a ninguém.
Paris, Abril de 2014
Dinu Flămând (24 de Junho 1947, Roménia) é um escritor e jornalista romeno contemporâneo, o mais importante tradutor da obra de Fernando Pessoa para romeno. Actualmente vive em França onde trabalha como jornalista para a Secção Romena da Radio France Internationale.
Nascido na aldeia de Susenii Bârgaului, no Norte da Transilvânia, a 24 de Junho de 1947, Dinu Flămând conduziu uma actividade intensa de divulgação e de crítica literária desde a sua juventude, uma actividade sempre marcada por uma abertura a novos valores e novas correntes de pensamento. Começou a escrever poesia e ensaio, tentando sempre contornar a vigilância da censura que se tornava cada vez mais sufocante, obrigando a cortes sistemáticos nos seus escritos. Desencantado com as mutilações constantes da sua obra, Dinu Flămând buscou algum refúgio nas traduções de grandes escritores, entre as quais as de alguns poetas de língua portuguesa como Fernando Pessoa, Herberto Hélder, Miguel Torga ou Sophia de Mello Breyner Andresen.
Em Fevereiro de 1989, aproveitando um convite para participar em Lisboa num congresso de escritores lusófonos, Dinu Flămând decide não regressar à Roménia e, em Março, obtém asilo político em França, país onde ainda hoje trabalha como jornalista da Radio France Internationale, colaborando também regularmente em revistas e jornais romenos e estrangeiros.